Revistas Pessoais em Empregados: a Dignidade da Pessoa Humana e os Limites ao Poder Diretivo do Empregador

AutorAlberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira
Páginas284-289

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Não se pode perder de vista que o Direito do Trabalho tem a sua gênese na reação aos fatos e à necessidade de proteção dos trabalhadores quando aviltados pelos primeiros excessos da Revolução Industrial. O Direito do Trabalho é, assim, ramo jurídico especialmente protetivo, cunhado sobre desigualdade essencial entre empregados e empregadores. Àqueles, sem sombra de dúvidas, voltam-se os olhos do Direito do Trabalho. Para os empregadores, por outra quadra, as normas trabalhistas atuam, precipuamente, no estabelecimento de limites.

Dentro de um espectro possível de marcha circular - dir-se-ia também pendular - da história e das interações entre os múltiplos sujeitos históricos e o tempo (este aniquilador desafio), não se pode descartar, na atualidade, a repetição ou a invasão de cenas que se deveriam conformar ao passado: a despeito de todos os avanços sociais e técnicos da civilização, ainda se pode testemunhar, no quadro da relação de emprego, comportamentos perversos, que a surpresa industrial do século XIX inscreveu e que já não mereceriam vida nos dias de hoje.

A ordem jurídica há de se manter atenta.

Enquanto matriz, a Constituição Federal de 1988, ao trazer para si o foco sobre institutos jurídicos que, antes, não transcendiam os limites da legislação ordinária, garantiu ao Direito do Trabalho, aos seus aplicadores, fundamentais ferramentas de atuação e de realização. A absorção do que poderíamos denominar estatuto essencial garante à voz desse sensível ramo do direito a necessária influência de todo o arsenal de princípios constitucionais, outorgando-lhe maior poder de coerção.

Naquilo que a base constitucional o estimula, o ordenamento jurídico responde e corresponde, reerguendo mecanismos de afirmação e expressão máxima dos fundamentos constitucionais.

"É o conteúdo social imprimido pela Constituição Federal de 1988 que eleva o trabalho à condição de princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV) e direito fundamental do ser humano (art. 6º, caput)."1

Nesse vetor, a dignidade da pessoa humana assume a ponta da cena e dá o necessário lastro ao Estado Democrático de Direito.

Esses marcos não passam despercebidos quando se cuida, em doutrina, direito objetivo e jurisprudência, de toda a relação de emprego e, dentro dela, para o que se busca, do poder diretivo do empregador e de seu exercício quando promove revistas pessoais em trabalhadores - aspecto de reafirmada preocupação contemporânea.

Os limites e consequências da atuação patronal nesse segmento merecem detida análise e, com descortino, encontrarão base robusta de reflexão e respostas na obra doutrinária e na jurisprudência orientada pela firme, despretensiosa e exemplar atuação como magistrado do eminente Ministro Mauricio Godinho Delgado, a quem estas breves e apoucadas palavras somente poderão homenagear em intenção.

1. Poder diretivo

Na antiguidade romana, o domus era impenetrável para o Estado. A sujeição acompanha a história, quando se pensa, por exemplo, na escravidão - entre nós somente abolida no século XIX! Estes dois pequenos exemplos demonstram que o fenômeno social passa, desde sempre, por duas referências básicas: poder e resistência2.

A palavra "poder", na dicção de Houaiss3, expressa "direito ou capacidade de decidir, agir e ter voz de mando;

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autoridade"; "supremacia em dirigir e governar as ações de outrem pela imposição da obediência; domínio, influência". Absorve, como se vê, a figura da autoridade, da força.

Deve-se conceituar o poder diretivo como "o conjunto de prerrogativas tendencialmente concentradas no empregador dirigidas à organização da estrutura e espaço empresariais internos, inclusive o processo de trabalho adotado no estabelecimento e na empresa, com a especificação e orientação cotidianas no que tange à prestação de serviços"4. Encontrará lastro no art. 2º da CLT quando afirma que o empregador "dirige" a prestação pessoal de serviços. Ora, o art. 2º da CLT está inserido entre normas de regência de uma relação contratual, que é a trabalhista.

Assim, desde logo, toma força a compreensão de que o poder diretivo encontra justificativa apenas no próprio contrato de trabalho, dentro do diálogo traçado pelos arts. e da CLT, quando corporalizam as figuras de empregado e de empregador. No mesmo passo, decaem as correntes - francamente ultrapassadas - defensoras de que o poder diretivo se calca no direito de propriedade ou na concepção meramente política da empresa enquanto instituição.

Ainda que referência ao direito de propriedade, reiteradamente, compareça, inclusive com a sua unção constitucional, quando se debate sobre o poder diretivo do empregador, é fundamental remarcar-se que nenhum empregador é proprietário quer do trabalhador, quer de sua força de trabalho. A propriedade ou detenção sob outros títulos do estabelecimento ou organização que demandem serviços está restrita a este âmbito. Somente por menção, imagine-se tomar tal fundamento em relação às entidades paraestatais, às instituições religiosas.

Na mesma direção, enquanto poder lastreado em contrato, o poder diretivo terá a natureza jurídica de direito-função - só o funcionamento da empresa justificará e autorizará o seu exercício, confrontado que sempre estará com os direitos de seus empregados. Aqui, uma nota reflexa do art. 421 do Código Civil, quando ressalta a função social do contrato5.

Assim é que aos empregados cabe a recusa ("resistência") a comandos ("poder") contrários à lei, que levem a risco a sua integridade física ou o seu patrimônio moral, que comprometam sua dignidade, privacidade, honra ou intimidade.

Vê-se que o poder diretivo modula o conceito de subordinação jurídica por quaisquer das dimensões que, modernamente, materializam-no6: o empregado trabalha de forma subordinada em função do poder de direção do empregador - direitos e obrigações recíprocas aí compreendidas.

O poder diretivo se manifesta por funções. A função de organização (organização do empreendimento, distribuição de funções, horários etc.); de controle (gerenciamento e acompanhamento dos trabalhos; modo de se os executar) e a função disciplinar (aplicação de penalidades). Cada uma dessas funções encontrará limites no ordenamento constitucional, infraconstitucional e supranacional.

2. Revistas pessoais

Um especial foco a ser considerado, dentro das limitações patronais para o exercício do poder diretivo, deve recair sobre as chamadas revistas pessoais em trabalhadores.

Revista consiste no exame do trabalhador ou trabalhadora para o controle de subtração de bens patronais ou de porte de objetos incompatíveis com o trabalho.

Esta iniciativa, de índole policial, por parte do empregador, esbarra, necessariamente, nos direitos - e naqueles constitucionais sobretudo - do empregado. Ninguém pode tudo. As faculdades de qualquer indivíduo, de qualquer instituição, para além do que trace o ordenamento, estão limitadas não só pelo que cabe aos outros indivíduos e instituições, mas, ainda, pelo que, legitimamente, podem exigir na defesa de seus patrimônios jurídicos.

A Constituição da República tutela a privacidade, honra e a intimidade, coibindo práticas que ofendam a dignidade da pessoa humana e constituam tratamento degradante (arts. 1º, inciso III, e , caput e incisos III e X). O art. 373-A, inciso VI, da CLT, por seu turno, conduz a possibilidade de revista, em caráter excepcional, à regra trabalhista, desde logo vedando-a quando íntima7. O preceito, embora dirigido às mulheres empregadas, é passível de aplicação aos empregados em geral, em face do princípio da igualdade também assegurado pelo Texto Maior (Constituição Federal, art. 5º, caput).

Ao assumir os riscos de seu empreendimento (CLT, art. 2º), o empregador toma a si a obrigação de adotar providências que garantam a segurança de seu patrimônio, iniciativa que encontrará larga resposta por parte da tecnologia moderna. Assumir os riscos de seu empreendimento significa não os transferir aos trabalhadores.

O Direito Brasileiro...

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