Os Direitos Sociais como Limites ao Poder Constituinte de Reforma: Dignidade Humana, Trabalho e Justiça Social

AutorGustavo Filipe Barbosa Garcia
Páginas268-274

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Introdução

O presente estudo tem como objetivo analisar a inserção dos direitos sociais no âmbito dos direitos fundamentais.

Procura-se analisar, ainda, a possibilidade de reforma constitucional no que se refere aos mencionados direitos de ordem social.

Em tempos de constantes mudanças, bem como de intensas alterações legislativa e constitucional, há relevância em saber se os direitos sociais, inclusive trabalhistas e previdenciários, podem ser alterados por emendas constitucionais, bem como se é jurídica e legítima a sua abolição (ou mesmo redução) pelo poder constituinte derivado de reforma, tendo em vista o princípio da dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho e a justiça social.

1. Direitos sociais no contexto da evolução dos direitos fundamentais

A doutrina dos direitos fundamentais tem origem na concepção de que o Direito é algo que o ser humano recebe e descobre, ou seja, um Direito justo e sábio.

Sobre o tema, destaca-se, inicialmente, a doutrina do Direito Natural, com raízes na Antiguidade (Aristóteles), fazendo-se presente, ainda que com enfoques próprios, em

Roma (Cícero), na Idade Média (São Tomás de Aquino) e nos séculos XVII e XVIII, quando se passou a defender o jusnaturalismo laico e fundado na razão, conforme as doutrinas de Hugo Grócio, bem como do "contrato social", de Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau1, que apresentam certas particularidades entre si2.

Ainda quanto aos antecedentes históricos dos direitos fundamentais, merece referência a Magna Carta, de 21 de junho de 1215, que foi o resultado de um acordo entre o rei João sem Terra e os "barões" ingleses3.

No que se refere à evolução dos direitos fundamentais, segundo parte da doutrina, é possível distinguir três "dimensões" de direitos4, conforme teoria lançada por Karel Vazak, "em Conferência proferida no Instituto Internacional de Direitos Humanos no ano de 1979"5.

Historicamente, pode-se dizer, em termos didáticos e com certa generalização, que houve três momentos de conscientização dos referidos direitos. De todo modo, cabe frisar que, na verdade, todos eles são relevantes e essenciais ao ser humano.

A primeira dimensão corresponde a uma conscientização do século XVIII, incorporando ideias relativas aos chamados direitos subjetivos naturais. Assim, nas Declarações de Direito do século XVIII, ganham destaque os direitos de "liberdade", reconhecendo-se os direitos civis e políticos6.

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Tem-se, portanto, a consagração dos direitos individuais, civis e políticos7.

A segunda dimensão corresponde justamente aos direitos sociais, como o direito ao trabalho, à educação, à saúde, bem como os direitos trabalhistas e previdenciários, enfatizados no início do século XX8. O objetivo, no caso, é de corrigir as desigualdades sociais e econômicas, procurando solucionar os graves problemas decorrentes da "questão social", surgida com a Revolução Industrial.

Como ressalta Marco Aurélio Serau Júnior, os "direitos sociais, aí incluídos aqueles da esfera da Seguridade Social", devem ser "considerados como direitos de resposta ou, em outras palavras, direitos em resposta à questão social" 9.

No plano político, o direito ao sufrágio universal fez com que a classe trabalhadora adquirisse certa participação e força política. Também em razão desse aspecto, o Estado passa a intervir no domínio econômico-social10. Observa- -se a consagração de direitos econômicos, sociais e culturais, inerentes ao Estado Social, objetivando-se a "igualdade"11, sob o enfoque material, e justiça social.

Sendo assim, quanto ao tema aqui examinado, conforme as precisas lições de Mauricio Godinho Delgado:

"O Direito do Trabalho corresponde à dimensão social mais significativa dos Direitos Humanos, ao lado do Direito Previdenciário (ou de Seguridade Social). É por meio desses ramos jurídicos que os Direitos Humanos ganham maior espaço de evolução, ultrapassando as fronteiras originais, vinculadas basicamente à dimensão da liberdade e intangibilidade física e psíquica da pessoa humana."12

A terceira dimensão refere-se aos direitos de solidariedade, pertinentes ao desenvolvimento, ao patrimônio comum da humanidade, à autodeterminação dos povos, à paz, à comunicação e à preservação do meio ambiente13. Ademais, há autores que já fazem referência a uma quarta dimensão, voltada aos direitos da biogenética e do patrimônio genético14, ou aos direitos à participação democrática, à informação e ao pluralismo15.

Os direitos fundamentais estão alicerçados na dignidade da pessoa humana, entendida como valor jurídico supremo, como se observa no art. 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Os referidos direitos podem ser tanto explícitos como implícitos, de modo que a sua eventual enumeração (em Declarações de Direitos, Tratados, Convenções, na Constituição e outros instrumentos normativos) não é exaustiva. Na Constituição da República, esse aspecto é bem nítido, como se verifica em seu art. 5º, § 2º16.

2. Poder constituinte originário e poder constituinte derivado de reforma

O poder constituinte originário dá origem à Constituição, entendida como a norma jurídica superior17.

Com o surgimento de nova ordem jurídico-constitucional, as disposições anteriores, que forem incompatíveis com aquela, não são recepcionadas, acarretando a sua consequente revogação18. Nesse sentido, em tese, não haveria como prevalecer pretenso direito adquirido contrário à nova Constituição19.

Quanto ao tema, cabe transcrever o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal:

O constituinte, ao estabelecer a inviolabilidade do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, diante da lei (art. 5º, XXXVI), obviamente, excluiu-se dessa limitação, razão pela qual nada o impedia de excluir, dessa garantia, a situação jurídica em foco. Assim é que, além de vedar, no art. 37, XIV, a concessão de vantagens funcionais em ‘cascata’, determinou a imediata supressão de excessos da espécie, sem consideração a ‘direito adquirido’, expressão que há de ser entendida como compreendendo não apenas o direito adquirido propriamente dito, mas também o decorrente de ato jurídico perfeito e da coisa julgada. [...]. Inconstitucionalidade não configurada. Recurso não conhecido. (STF, RE 140894, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 10.5.1994, DJ 9.8.1996).

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A situação, no entanto, é distinta na hipótese de emenda constitucional, produzida pelo poder constituinte derivado. A emenda constitucional é decorrente do poder constituinte de reforma (instituído), o qual se caracteriza por ser derivado (provém de outro), subordinadolimitado pelo poder originário) e condicionado (só pode agir nas condições e formas fixadas)20.

3. Limites ao poder constituinte derivado de reforma

Examinados os aspectos antecedentes, cabe destacar que, nos termos do art. 60, § 4º, IV, da Constituição da República, "os direitos e garantias individuais" não podem ser objeto de emenda constitucional tendente a aboli-los.

À primeira vista, os referidos direitos e garantias seriam aqueles previstos, expressamente, no art. 5º ("Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos"). Deve-se ressaltar, entretanto, que o § 2º, desse mesmo art. 5º, também resguarda outros "direitos e garantias" "decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

Por meio dessa norma de extensão, pode-se dizer, por exemplo, que o princípio da norma mais benéfica, decorrente do princípio de proteção, inerente ao Direito do Trabalho, previsto no caput do art. 7º da Constituição da República21, está integrado ao sistema constitucional de direitos e garantias, não podendo ser objeto de emenda tendente à sua abolição (arts. 60, § 4º, IV, 5º, § 2º, 7º, caput).

A universalidade da cobertura e do atendimento, a uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais, a seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços, a irredutibilidade do valor dos benefícios, como princípios da Seguridade Social22, de natureza fundamental, também não podem ser afastados, nem mesmo por meio de emenda à Constituição (arts. 60, § 4º, IV, 5º, § 2º, 194, parágrafo único, da CRFB/1988).

Da mesma forma, os objetivos fundamentais da República, previstos no art. 3º da Constituição, devem ser interpretados sistematicamente com o § 2º do seu art. 5º.

Existem, ainda, princípios constitucionais fundamentais, presentes no texto da Constituição de 1988, os quais figuram como verdadeiros alicerces na regulação da matéria. Nesse sentido, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo como "fundamentos": a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa (art. 1º da CRFB/1988).

A dignidade humana, conforme já mencionado, é a própria essência dos direitos fundamentais, nos quais se inserem aqueles de ordem social. Justamente em razão disso, tem-se o princípio do valor social do trabalho, também de ordem fundamental.

Da mesma forma, constituem "objetivos fundamentais" da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º da CRFB/1988).

Cabe destacar que a República Federativa do Brasil, em suas...

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