Execução contra o poder público

AutorHugo de Brito Machado Segundo
Páginas53-69
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EXECUÇÃO CONTRA O PODER PÚBLICO
A jurisdição envolve, como se sabe, não apenas a atividade de determinar se alguém
que reclama o reconhecimento de um direito subjetivo, negado ou resistido por outrem,
efetivamente possui esse direito, no âmbito da chamada tutela cognitiva. Há jurisdição,
também, quando, pressuposta a existência do direito subjetivo, discutem-se meios para
torná-lo efetivo, diante da resistência de quem deveria adimpli-lo, prestando-se a assim
chamada tutela executiva.
Neste capítulo, serão examinadas algumas particularidades relacionadas ao exer-
cício da tutela executiva, quando a parte demandada é o Poder Público. Há, inclusive,
contradição em imaginar-se uma execução contra a Fazenda Pública, porquanto o Estado,
detentor do monopólio do uso da força, estaria1 no caso utilizando da força contra si
mesmo, o que não deixa de sugerir a presença, efetivamente, de particularidades dignas
de serem examinadas.
Poder-se-ia objetar que também na tutela cognitiva, aliás, em qualquer espécie de
tutela, haveria a apontada contradição, pois o Estado exerce a jurisdição contra si (daí
as particularidades que em geral cercam o tema, e que de resto justif‌icam este livro).
No caso da tutela executiva, contudo, isso é mais evidente, e visível, pois o Judiciário,
com a separação de poderes ou funções, realmente af‌irma quem possui, ou não, o
direito af‌irmado, e pode fazê-lo com independência em relação aos demais poderes,
notadamente o Executivo. No plano da tutela executiva, não. Se realmente necessário
o uso da força, quem a detém é o Executivo, através das forças de segurança internas e
externas (polícia e exército), que prestarão auxílio ao Judiciário na efetivação de suas
decisões. Daí dizer-se que, a rigor, a expressão “execução contra a Fazenda Pública” é
um contrassenso.
De uma forma ou de outra, esse contrassenso se revela apenas na hipótese de a exe-
cução chegar às últimas consequências, com a necessidade efetiva do uso da força. Antes
disso, não se pode negar a necessidade de se estabelecer um procedimento no âmbito do
qual decisões judiciais possam ser cumpridas pela Fazenda, que, nesse procedimento,
deve ter a oportunidade de apontar eventuais equívocos ou excessos na pretensão for-
1. Na verdade, isso não ocorre, visto que, dada a inalienabilidade e a impenhorabilidade dos bens públicos, não há
constrição patrimonial, mas apenas um procedimento para que a dívida seja paga perante o Judiciário. Cf. FUR-
TADO, Paulo. Execução. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 280. CUNHA, Leonardo José Carneiro. A Fazenda
Pública em Juízo. 13.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 332. Daí Juvêncio Vasconcelos Viana aludir a uma “falsa
execução” no qual o ente público é “convidado” a incluir em seu orçamento a previsão necessária ao pagamento
de seus débitos. Cf. VIANA, Juvêncio Vasconcelos. Efetividade do processo em face da fazenda pública. São
Paulo: Dialética, 2003, p. 162.
PODER PÚBLICO E LITIGIOSIDADE • HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO
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mulada pela parte adversa, tendo como parâmetro a decisão de cujo cumprimento se
cogita. É de aspectos relacionados a esse procedimento que cuida o presente capítulo.
5.1. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA COMO MODALIDADES DE EXECUÇÃO (EM
SENTIDO AMPLO) CONTRA A FAZENDA PÚBLICA
Sabe-se que, com o advento do Código de Processo Civil de 2015, não existe mais
“execução de sentença” contra a Fazenda Pública. No novo diploma processual, am-
pliou-se também para a Fazenda a ideia, já presente no Código de 1973 desde a reforma
por ele sofrida em 20052, de “cumprimento de sentença” como uma etapa ou módulo
do processo de conhecimento, que se tornou assim um processo sincrético3. Apesar
da mudança procedimental, não deixa de ser prestada, no caso, a tutela jurisdicional
executiva.
A nova terminologia, porém, af‌igura-se menos paradoxal, considerando-se a crítica
formulada no item anterior, porquanto tem-se um procedimento através do qual será
cumprida, pela Fazenda, a obrigação reconhecida na sentença, mesmo que não haja
oposição de sua parte4.
5.2. REALIDADE BRASILEIRA ANTERIOR AO PRECATÓRIO
Em alguns outros países, costuma causar perplexidade a pergunta, feita por um
brasileiro: “como a Fazenda Pública deste país paga os débitos decorrentes de condenação
judicial?”. Depois de afastar a impressão de não ter entendido a pergunta em razão de
alguma barreira linguística, o interlocutor invariavelmente responde: “- Com dinhei-
ro!... Por que, no Brasil não é assim?”5. A pergunta causa espanto porque, em outros
países, o Poder Público eventualmente discute em juízo, até as últimas instâncias, as
questões nas quais considera ter razão, em ações de conhecimento contra ele movidas
por cidadãos. Mas, uma vez condenado, paga prontamente6 a quantia correspondente.
Daí o contrassenso referido no início deste capítulo que a expressão “execução contra a
Fazenda” sugere. A resistência ao cumprimento de decisões judiciais pelo próprio ente
público cria um paradoxo no âmbito do Estado de Direito, de consequências bem mais
graves do que uma análise meramente formal poderia fazer parecer.
3. Sincrético porque em seu âmbito prestam-se tutelas jurisdicionais de mais de uma espécie, a saber, cognitiva,
executiva e, eventualmente (no âmbito das tutelas provisórias), cautelar.
4. No caso do cumprimento de sentença contra particulares, a mudança traz uma impropriedade, pois estes po-
deriam ter “cumprido” a sentença sem a necessidade do procedimento, que a rigor envolve, ou pode envolver
se não houver o pagamento no prazo de 15 dias previsto no art. 523 do CPC, efetiva “execução”. No caso da
Fazenda, não: condenada judicialmente, ela não pode adimplir a dívida reconhecida na sentença senão através
de precatório, ou, conforme o caso, requisição de pequeno valor (RPV).
5. Os autores deste livro repetiram esta pergunta a pesquisadores da Holanda, da Áustria, da Alemanha, de Portugal
e da Espanha, e a resposta foi a mesma.
6. Na Polônia, por exemplo, o pagamento dá-se em até trinta dias: WILK, Michal; WLODZIMIERZ, Nykiel (eds).
Polish tax system: business opportunities and challenges. Warzawa: Wolters Kluwer, 2017, p. 79.

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