Existe um direito legislado da antidiscriminação para pessoas LGBTQIA+ no Brasil hoje?/Is there a legislated anti-discrimination law for LGBTQIA+ people in Brazil today?

AutorRamos, Marcelo Maciel
  1. Introdução: uma disputa existencial

    Existe um direito da antidiscriminação legislado que proteja as pessoas LGBTQIA+ no Brasil de hoje? Este artigo pretende demonstrar que sim. O ponto de partida é uma certa disputa existencial, que faz desta demonstração algo mais complexo do que parece àprimeira vista. De um lado, o direito da antidiscriminação se afirma progressivamente no mundo do direito, o que se passa de modo cada vez mais visÃÂvel também na literatura jurÃÂdica nacional. Essa afirmação se dá tanto de maneira geral, na reflexão jurÃÂdica sobre os fundamentos da discriminação e suas muitas formas de expressão, quanto na especificação em matéria de identidades de gênero e sexualidades não hegemônicas, num direito da antidiscriminação LGBTfóbica (RIOS, 2008; MOREIRA, 2020). Pelo outro lado, contudo, o senso comum, as opiniões de circulação midiática, os ativismos, as decisões judiciais e as análises jurÃÂdicas insistem na ideia de que este direito antidiscriminatório para pessoas LGBTQIA+ não estaria propriamente previsto em leis expressas, ou estaria de modo bastante restrito (BOMFIM, BAHIA, 2019; VECCHIATTI, 2020; BRITO, 2021).

    Diante deste certo impasse jurÃÂdico, por meio de levantamentos normativos, especialmente legislativos, que atravessam todas as esferas da federação, bem como de pesquisa teórica interdisciplinar, a ideia é demonstrar que este direito da antidiscriminação de pessoas de gêneros e sexualidades dissidentes existe sim, e tem uma importante e especÃÂfica dimensão legislativa. Ou seja, ele não é apenas composto de decisões judiciais que interpretam princÃÂpios jurÃÂdicos igualitários abertos, ou de legislação escassa, aberta e inespecÃÂfica. Ou de proposições teóricas, investigativas ou crÃÂticas da literatura. Esse direito consta também de regulação expressa e farta contra a LGBTfobia em âmbito estadual e municipal, além da federal. E, como tal, é exigÃÂvel no presente, se articula de modo interdependente com outros direitos e não admite retrocessos futuros.

    Algo, contudo, deve ser reconhecido de inÃÂcio, e este artigo, de modo algum, coloca isso em questão. Há uma sensÃÂvel e muito problemática omissão legislativa na esfera federal no Brasil, com uma deficiência de leis nacionais que sistematicamente proÃÂbam a discriminação LGBTfóbica. A própria importância das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que lidam com a omissão jurÃÂdica em matéria de direitos afetos às dissidências de gênero e sexualidade confirma esta percepção (BRASIL, 2022). A hipótese do artigo, contudo, é a de que uma leitura totalizante desse quadro de omissão parece estreitar as possibilidades de compreensão do direito nacional antidiscriminatório como um todo. E a partir disso, contribuir para a consolidação do direito da antidiscriminação contra pessoas LGBTQIA+, sobretudo em sua operatividade.

    Para fazer sua proposição direta de existência de um direito também legislado de antidiscriminação LGBTQIA+, o artigo se organiza em dois grandes momentos, ao redor de um mapa federado da legislação antidiscriminatória: conhecê-lo e situá-lo. O primeiro momento, conhecer o mapa, é um esforço empÃÂrico de consolidação de legislação. Tomase, claro, por referência inicial o quadro antidiscriminatório constitucional e federal, com as interpretações do STF nos grandes temas dos direitos LGBTQIA+. Mas, diante da profusão de boas análises deste conjunto normativo e decisório mais evidenciado (RIOS, MELLO, 2020; PEDRA, 2020; VECCHIATTI, 2020), a proposta se move rapidamente para aquilo que se constitui na sua contribuição especÃÂfica: a existência de legislação antidiscriminatória nos estados e municÃÂpios. Aqui, um trabalho difÃÂcil de coleta e compreensão dos sentidos amplos da regulação regional e local é quem vai garantir um traçado forte para as linhas desse mapa.

    O segundo momento o artigo pretende situar o mapa em seu contexto jurÃÂdico mais amplo, explorando algumas dimensões reclamadas como fundamentais para a compreensão deste conjunto regulatório. E para colocá-lo em movimento, discutindo sua aplicabilidade imediata. Propõe-se uma leitura de três dimensões: a dimensão da exigibilidade, que abre diálogo com a reflexão contemporânea do caráter de direitos fundamentais dos direitos LGBTQIA+ e com sua exigibilidade geral; a da interdependência, dimensão clássica dos direitos fundamentais, explorada para reconectar a antidiscriminação LGBTQIA+ com outras esferas da regulação da vida, como os direitos sociais em sentido amplo; e, por fim, a progressividade social e vedação ao retrocesso, recuperada em seus sentidos gerais para se colocar como direcionamento jurÃÂdico chave num paÃÂs que de modo recorrente sinaliza na direção de potenciais ataques legislativos a esses direitos.

    A conclusão ilumina um processo em curso, com toda sua complexidade: a afirmação da existência dessa dimensão legislada do direito antidiscriminatório para pessoas LGBTQIA+ no Brasil e a constatação de que esse está longe de ser o fim da história, das disputas jurÃÂdico-polÃÂticas ao redor do tema. No cenário contemporâneo, e consideradas também as formas de se viver concretamente esses direitos, não há como se contentar com uma leitura simples deste conjunto normativo. O artigo termina em um gesto de revisita àdisputa de sentidos do qual o mapa traçado não poderá sair.

  2. Um mapa da legislação antidiscriminatória protetora de pessoas LGBTQIA+ no Brasil federado

    O primeiro movimento do artigo quer desenhar um mapa legislativo: identificar e analisar as principais normas no Brasil federado que, modo direto ou indireto, tratam da discriminação LGBTfóbica. Esse gesto de compilação, contudo, não tem natureza meramente técnica, em mais um desses esforços de sistematização que a história do direito nos apresenta de modo recorrente. No caso do direito antidiscriminatório para pessoas LGBTQIA+, traçar esse mapa é recuperar processos de luta travados em arenas jurÃÂdico-polÃÂticas que têm um grau de intensidade particularmente importante, sobretudo nos últimos anos. A pauta das questões LGBTQIA+ é percebida, hoje, politicamente como explosiva, no contexto de uma "cruzada antigênero" (MISKOLCI, CAMPANA, 2017; JUNQUEIRA, 2017; BIROLI, VAGGIONE, MACHADO, 2020). Isso, em matéria de dissidências de gênero e sexualidade, em reação também ao do processo de mobilização e luta pelo movimento LGBTQIA+ no mundo e paÃÂs (GREEN, QUINALHA, FERNANDES, CAETANO, 2018; LIMA, 2021; QUINALHA, 2022), tensionando e reclamando uma reversão dos modos repressivos de tratamento das identidades de gênero e sexualidades dissidentes que vigorou entre nós (QUINALHA, 2021). E isso tece um pano de fundo geral de disputa, que atravessa o mapa que propomos. Porque essa é uma disputa que assume fortemente a linguagem dos direitos e que passa a se desdobrar largamente também no legislativo.

    2.1. Projetos de lei como testemunhos da disputa ao redor dos direitos LGBTQIA+

    Nas casas legislativas, os primeiros projetos de lei e as leis dirigidos àproteção ou àgarantia de direitos a população LGBTQIA+ aparecem no Brasil em meados da década de 1990. Nos municÃÂpios e estados, como veremos adiante, o inÃÂcio do século XXI foi marcado pela multiplicação de leis antidiscriminatórias e, muito recentemente, pelo aparecimento de leis que dispõem sobre aspectos importantes das vidas de pessoas transexuais e travestis, como o direito ao uso do nome social. No Congresso Nacional, contudo, essa disputa discursiva pendeu para o lado das forças conservadoras, que desumanizam e recusam o reconhecimento de direitos para pessoas LGBTQIA+. Nas décadas de 1990, 2000 e 2010, apesar das dezenas de projeto de lei propostos (1), o Congresso Nacional não produziu, a bem da verdade, nenhuma lei voltada para a população LGBTQIA+. Todos os projetos propostos terminaram arquivados, arrastaramse ou ainda se arrastam por anos na Câmara dos Deputados e no Senado, sem nunca terem sido levado àvotação do plenário (2).

    O primeiro projeto de lei do Congresso Nacional dirigido a garantia de direitos de pessoas LGBTQIA+ foi proposto em 1995 pela então deputada federal Marta Suplicy (PT). Esse projeto de lei, o PL 1.151/1995, pretendia disciplinar "a união civil entre pessoas do mesmo sexo", mas foi retirado de pauta em 2001. Em 2003, o senador Sérgio Cabral (MDB) propôs um Projeto de Emenda Constitucional (PEC 70/2003) para alterar o artigo 226 da Constituição, permitindo "a união estável entre casais homossexuais". A proposta foi retirada pelo próprio autor em 2006. Em 2005, o deputado MaurÃÂcio Rands (PT) propôs o PL 6297/2005 que pretendia garantir o direito de inclusão do companheiro ou companheira homossexual como dependente do trabalhador ou servidor para fins de proteções previdenciárias. O projeto não teve sucesso e foi arquivado em 2015. Em 2006, a deputada Laura Carneiro (do então PFL) propôs o PL 6874/2006 para alterar o Código Civil a fim de regular "o contrato de união homoafetiva". O projeto seguiu o mesmo destino e foi arquivado em 2008. Em 2007, o deputado Clodovil Hernandes (PTC) propôs o PL 580/2007 para alterar o Código Civil e regular "o contrato civil de união homoafetiva". O projeto continua em tramitação, sem qualquer previsão de votação. Em 2007, o deputado SÃ...

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