Fake news, eleições e comportamento

AutorRenata Ribeiro Baptista, Julio Cesar de Aguiar
CargoPhD pela University of Aberdeen, Reino Unido (2012). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2006). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (2001). Professor da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getulio Vargas. E-mail: juliocesar.deaguiar@gmail.com. / Mestranda pela Universidade Católica de...
Páginas120-163
Fake news, eleições e comportamento
Fake news, elections and behavior
Julio Cesar de Aguiar*
Universidade Católica de Brasília, Brasília – DF, Brasil
Renata Ribeiro Baptista**
Fundação Getúlio Vargas, Brasília – DF, Brasil
1. Introdução
Quando foi se despedir de sua mãe no leito de morte, Mark Bellison, um
roteirista fracassado, revolucionou o mundo em que vivia. Emocionado
porque sua mãe dizia ter medo do vazio após a morte, Mark disse a ela
que todos encontrariam seus entes queridos e ganhariam uma mansão, e
ela, que gostava muito de dançar, poderia fazê-lo por toda a eternidade.
Mark viu sua mãe morrer alegre, com um grande sorriso nos lábios. Isso
foi possível porque, no mundo em que Mark vivia, ninguém era capaz de
contar mentiras, todos falavam a verdade, sempre. Porém, Mark tinha aca-
bado de descobrir que conseguia mentir! Ocorre que ele também começou
a mentir para influenciar a mulher que amava para que eles namorassem.
Mark procurava, com mentiras, impedir que ela mantivesse um relaciona-
mento amoroso com qualquer outra pessoa e se convencesse de que ele era
* PhD pela University of Aberdeen, Reino Unido (2012). Doutor em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina (2006). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás
(2001). Professor da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getulio Vargas.
E-mail: juliocesar.deaguiar@gmail.com.
** Mestranda pela Universidade Católica de Brasília, em convênio com a Escola Superior do Mi-
nistério Público da União. Pós-Graduada pela Escola Superior do Ministério Público da União
(2012). Procuradora da República em São João de Meriti, no Rio de Janeiro. E-mail:renatabap-
tista@mpf.mp.br.
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o melhor para ela. Ele também começou, literalmente, a inventar História:
como todos falavam a verdade, os grandes clássicos do cinema eram even-
tos históricos reais, contados por narradores a partir de roteiros meramente
descritivos; mas Mark podia simplesmente mentir, e seus roteiros passaram
a descrever falsos eventos históricos, tornando-se os filmes mais assistidos.
Grosso modo, esse é o roteiro de O Primeiro Mentiroso (The Invention
of Lying, 2009). O mundo sem mentira alguma era linear e, não raras as
vezes, até cruel. As relações eram duras. Mas a mentira não transformou
o mundo em um lugar melhor, apenas fez mudar os dilemas de cada um.
O uso de mentiras e narrativas dúbias sempre esteve presente na es-
tratégia de propaganda de regimes, partidos e candidatos, não só para au-
topromoção, como também para ataques a concorrentes. Para não ir muito
longe em tempo e lugar, lembre-se das eleições de 1989, nas quais Fer-
nando Collor, então presidenciável e já no segundo turno, disse que Luiz
Inácio “Lula” da Silva, tambémpresidenciável, se vencedor, lançaria uma
investida contra as cadernetas de poupança1. No final, eleito, foi Collor
mesmo quem o fez. No segundo turno das mesmas eleições, a Rede Globo
foi acusada pelo Partido dos Trabalhadores de editar os debates finais para
favorecer Collor. Embora o questionamento não tenha sido bem sucedido
na Justiça Eleitoral – o PT queria que a emissora transmitisse uma nova
edição, a título de direito de resposta –, mais recentemente a própria Rede
Globo admitiu que a edição buscou privilegiar Collor2.
O que mudou, então? Segundo reportagem da BBC Brasil, em 2010,
o Partido dos Trabalhadores contratou um serviço de marketing de guer-
rilha”, responsável por blogs e perfis falsos voltados a conter divulgação
de informações desabonadoras da então candidata Dilma Rousseff e, ao
mesmo tempo, a promulgar informações contrárias ao candidato José Ser-
ra, seu opositor, com uso eventual de fake News3. Em 2013, sem usar a
expressão “fake news”, o Fórum Econômico Mundial classificou a massiva
desinformação digital como um risco global4. Pesquisadores da Fundação
Getúlio Vargas apontaram que, na campanha de 2014, uma série de perfis
falsos sediados na Rússia e no Leste Europeu ajudaram o candidato Aécio
1 CARVALHO, 2006; MADUENO, 1994.
2 MEMÓRIA GLOBO.
3 GRAGNANI, 2018.
4 HOWELL, 2013.
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Neves a formar uma rede de compartilhamento de conteúdo, distorcendo
a percepção das pautas mais debatidas nas eleições para presidente5.
Em 2016, sabe-se que a campanha do referendo para saída do Reino
Unido da União Europeia, conhecida como Brexit”, aliou as notícias fal-
sas ao risco à soberania nacional6. Mas foram as eleições estadunidenses,
ainda em 2016, que consolidaram a popularidade da expressão “fake news
e a reflexão mundial em torno delas, dada a utilização sistemática e ilegal
de informações pessoais partilhadas em mídias sociais para mapear o elei-
torado, garantir participação efetiva dos eleitores já fiéis ao partido no dia
da votação (uma vez que, nos EUA, o voto não é obrigatório), influenciar
eleitores indecisos e, ainda, promover contrainformação verdadeira e fal-
sa7. Em 2017, as eleições francesas enfrentaram o mesmo problema8.
A proximidade das eleições nacionais brasileiras parece tornar interes-
sante e necessária a discussão acerca das fake news nas eleições, inclusive
em função do avançado estágio de propagação de notícias falsas já em pe-
ríodo pré-eleitoral. No presente artigo, pretende-se discutir: (i) as relações
entre fake news e democracia, (ii) as medidas de abordagem às fake news
sob uma perspectiva da análise comportamental e (iii) as propostas atuais
contra as fake news no atual contexto eleitoral e sua efetividade.
Muitos conceitos de fake news são utilizados nas pesquisas e estudos
levantados, ora mais, ora menos abrangentes. De forma geral, é possível
compreender as fake news (ou notícias falsas, ou, ainda, notícias fraudu-
lentas9, expressões que serão utilizadas como sinônimas durante o texto)
como informações intencionalmente falsas, mas com uma roupagem tal
que lhes empreste confiabilidade, destinadas a enganar ou, no mínimo,
confundir seus receptores10 11.
5 BRANDINO, 2018.
6 BOOTH, et al., 2017.
7 ROSENBERG, CONFESSORE e CADWALLADR, 2018.
8 FARAND, 2017.
9 A expressão tem sido defendida pelo jornalista Carlos Eduardo Lins e Silva (FGV, 2018).
10 ALLCOTT e GENTZKOW, 2017.
11 Alguns pesquisadores têm criticado o uso da expressão fake news, sugerindo a adoção
de termos mais específicos, como “má informação” ou “desinformação” (WARDLE e DE-
RAKHSHAN, 2017).
Julio Cesar de Aguiar
Renata Ribeiro Baptista

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