Falhas na utilização de precedentes vinculantes em matéria tributária pelas cortes superiores brasileiras

AutorGustavo Perez Tavares
Páginas815-846
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FALHAS NA UTILIZAÇÃO DE PRECEDENTES
VINCULANTES EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA
PELAS CORTES SUPERIORES BRASILEIRAS
Gustavo Perez Tavares1
INTRODUÇÃO
Quando o assunto é segurança jurídica, o Poder Judiciário
deveria atuar como norte, dando concreção ao direito e retiran-
do-lhe suas incongruências. No entanto, conforme expusemos
em outros trabalhos, o Poder Judiciário brasileiro é forte fonte
de insegurança jurídica, notadamente em matéria tributária.
Seguindo nessa linha, o presente trabalho demonstrará as
graves consequências advindas de falhas na utilização e aplicação
de precedentes vinculantes pelas Cortes superiores brasileiras –
fato este agravado pela introdução, pelo CPC/2015, de um sistema
formal de vinculação do Poder Judiciário a diversos precedentes
–, a partir de atos temporalmente próximos, porém, antagônicos,
do Supremo Tribunal Federal
2
e do Superior Tribunal de Justiça
3
.
1. Mestre (2017) e Especialista (2014) em direito tributário pela PUC/SP. Visiting Re-
search Scholar, Cornell University Law School (2017-2019). Advogado.
2. Recurso Extraordinário nº 594.015/SP, julgamento em 06/04/2017, DJe de 05/08/2017.
3. Súmula 614, STJ. Disponível em: http://www.stj.jus.br/docs_internet/SumulasS -
TJ.pdf, acesso em 13/05/2019.
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PRECEDENTES E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Iniciaremos pelo julgamento do RE 594.015/SP, no qual
o STF, em apenas um acórdão, rompeu com uma jurispru-
dência historicamente pacificada acerca da materialidade do
Imposto Predial Urbano – IPTU, sem qualquer alteração le-
gislativa ou social que o justificasse. Em seguida, analisare-
mos a Súmula 614 do STJ, editada apenas alguns meses após
o referido RE 594.015/SP, mas ignorando-o completamente e
estabelecendo um conflito direto entre dois precedentes vin-
culantes nascidos pós-CPC/2015.
A minuciosa análise feita na primeira parte deste artigo,
da doutrina e jurisprudência acerca do IPTU até o julgamento
do RE 594.015/SP, apesar de um tanto tediosa, é necessária
para colocar o referido julgamento em perspectiva, ao com-
provar que anos de concreção do direito tributário foram
jogados fora por um colegiado que votou com base “na sua
consciência individual”, ignorando as amarras que as regras
jurídicas devem exercer em todos – inclusive nos juízes.
1. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA RE-
GRA-MATRIZ DO IPTU
Para bem entender o contexto no qual os precedentes
vinculantes que serão analisados foram proferidos, mister se
faz contextualizar a situação da doutrina e da jurisprudência
brasileiras acerca da regra-matriz de incidência do IPTU até
a prolação do RE 595.015/SP, em agosto de 2017 – notadamen-
te no que se refere à qualidade da posse do imóvel para fins de
configuração da materialidade do imposto.
Com efeito, a doutrina tradicional brasileira que se de-
bruçou sobre o IPTU firmou há muito posição no sentido de
que, para a configuração da materialidade do imposto muni-
cipal é necessária a ocorrência de propriedade de bem imóvel
urbano ou, não havendo a propriedade, a existência de posse
com animus domini, equivale dizer, posse com possibilidade e
intenção de se tornar proprietário.
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NOVOS RUMOS DO PROCESSO TRIBUTÁRIO:
Judicial, Administrativo e Métodos Alternativos de Cobrança do Crédito Tributário
Esse entendimento se firmou à luz da legislação atual-
mente vigente, a saber, não apenas as disposições constitucio-
nais insculpidas no art. 156, I, CF, mas também com base no
Código Tributário Nacional (arts. 32 a 34) que, em seu artigo
34, afirma estar o possuidor “a qualquer título” entre os sujei-
tos passivos do IPTU.
Iniciemos pelas disposições do art. 156, I, da CF, e lembre-
mos, ainda que de passagem, que a discussão da qualidade da
posse para o IPTU surge em razão de disposição do Código
Tributário Nacional, ou seja, norma infraconstitucional que,
por isso mesmo, não pode(ria) ser utilizada para interpretar
a Constituição4.
Esse destaque é ainda maior em se tratando de matéria
tributária, incluindo-se aí o IPTU, no qual o legislador ordiná-
rio possui pouca margem de manobra, uma vez que a “Cons-
tituição já direciona a autuação do legislador ordinário muni-
cipal”5. Na lição de Elizabeth Nazar Carrazza, pela análise do
dispositivo constitucional (art. 156, I, CF6):
Percebe-se, à primeira vista, que a Magna Carta, ao traçar, em
seu art. 156, I, a regra-matriz de incidência do IPTU, estabele-
ceu que este tributo deve ter por hipótese de incidência o fato de
uma pessoa (física ou jurídica) ser proprietária de imóvel (prédio
ou terreno) urbano. Trata-se, pois, de um imposto que incide so-
bre o direito real da pessoa sobre o bem imóvel urbano.
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4. Consagrando-se o chamado postulado de supremacia do texto constitucional.
Confira-se, entre outros: BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplica-
ção da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora
– 7.ed.rev. – São Paulo: Saraiva, 2009. O que não se confunde, vale dizer, com a in-
terpretação semântica do texto constitucional, esta sim, condicionada ao horizonte
de sentido jurídico composto, entre outros, pelos textos legais anteriores.
5. CARRAZZA, Elizabeth Nazar. IPTU e Progressividade – Igualdade e Capacidade
Contributiva. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 173.
6. “Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I - propriedade predial e territorial urbana; (…)” (destacamos)
7. CARRAZZA, Elizabeth Nazar. IPTU e Progressividade – Igualdade e Capacidade
Contributiva. São Paulo: Quartier Latin, 2015.

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