Família, Estado e autonomia privada

AutorRenata Vilela Multedo
Páginas15-103
Capítulo 1
Família, Estado e autonomia privada
(...) tenho a impressão de que a famí-
lia é eterna, que ela não está em peri-
go, que sua riqueza se deve ao mesmo
tempo à sua ancoragem numa função
simbólica e na multiplicidade de suas
recomposições.
Elizabeth Roudinesco
O direito existe sempre “em sociedade”, isto é, as solu-
ções jurídicas são contingentes a determinado ambiente.20 A
tradição de leitura e de reutilização sucessiva dos textos, dos
conceitos e das construções dogmáticas cria novos conteúdos
ou sentidos, em virtude da interação entre as figuras do texto
e os sucessivos contextos.21 Por isso, as normas jurídicas ape-
nas podem ser entendidas se estão integradas aos complexos
normativos que organizam a vida social, pois a própria produ-
ção do direito é, ela mesma, um processo social.22
O reconhecimento da relatividade e da historicidade dos
institutos jurídicos como uma das premissas da metodologia
civil-constitucional exige a contextualização histórica para
analisar esses institutos, uma vez que, em sua aparente con-
15
20 HESPANHA, António Manuel. A cultura jurídica europeia: síntese de
um milênio. Coimbra: Almedina, 2012, p. 13.
21 HESPANHA, 2012, p. 51.
22 HESPANHA, 2012, p. 25-27.
tinuidade terminológica, ocultam-se radicais transformações
semânticas.23 É na tomada de consciência pelo jurista que re-
side a importância dessa contextualização, sendo um grave
erro pensar, como destaca Perlingieri, “que, para todas as
épocas e para todos os tempos, haverá sempre os mesmos
instrumentos jurídicos. É justamente o oposto: cada lugar,
em cada época, terá os seus próprios mecanismos”.24
Conceitos como “liberdade”, “democracia”, “contrato”
e “família” são conhecidos como construções jurídicas há
séculos, mas, por detrás da continuidade aparente na su-
perfície das palavras, esconde-se uma descontinuidade ra-
dical na profundidade de sentido.25 É certo que, desde o di-
reito romano, já se tinha o instituto jurídico da família. En-
tretanto, cabe indagar: o que continua na família desde os
tempos dos romanos?26
Naquele contexto histórico, a perspectiva era fulcrada no
patrimônio privado, isto é, a família era juridicamente regu-
lada para assegurar a manutenção da propriedade nas famí-
lias romanas.27 Depois, com a difusão do cristianismo, foi in-
troduzida a moralidade, sem se perder a essência de salva-
guarda do patrimônio. A religião pode não ter criado a famí-
16
23 HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica
europeia, 1998, p. 43 et seq.
24 PERLINGIERI, Pietro. Normas constitucionais nas relações privadas.
Revista da Faculdade de Direito da UERJ, n. 6 e 7, p. 63-64,1998/1999.
25 HESPANHA, 2012, p. 17-18.
26 HESPANHA, 2012, p. 59.
27 “[...] patrimonium era a missão do pai: gerar e manter os bens de Roma
no ager romanus (campo romano) sem desvio algum. E matrimonium era a
missão da mãe: gerar e criar na domus romana (casa romana), também sem
desvio algum, os futuros cidadãos e chefes das famílias e gentes romanas,
herdeiros das coisas romanas, a dar continuidade à civitas romana” (BAR-
ROS, Sérgio Resende de. Matrimônio e patrimônio. Revista Brasileira de
Direito de Família, Porto Alegre, v. 2, n. 8, p. 6-7, 2001).
lia, mas, sem dúvida, criou as regras familiares28, baseadas na
indissolubilidade, na castidade, na virgindade e na procria-
ção. São paradigmas que, ainda no século passado, pautavam
o direito de família até mesmo nos Estados, em teoria, laicos.
No momento histórico atual, vivenciamos a despatrimo-
nialização do direito civil29, no qual o ser superou o ter.30 A
transformação decorre de dois fatores primordiais: primeiro,
do princípio da dignidade da pessoa humana como funda-
mento da República, consagrado no art. 1º, III, da Constitui-
ção Federal de 1988; segundo, do reconhecimento da nor-
matividade e da aplicabilidade direta dos princípios constitu-
cionais às relações privadas.31 Se, na hierarquia dos valores
constitucionais, a pessoa humana alcança o ápice do ordena-
mento brasileiro, as situações jurídicas existenciais prevale-
cem sobre as patrimoniais, pois é precisamente no plano ex-
istencial que se exprimem o ser e o agir da pessoa humana.32
O compromisso com a axiologia constitucional é a nova
concepção de segurança jurídica.33 A interpretação dos ins-
17
28 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martin Claret,
2002, p. 45-46.
29 “Com o termo, certamente não elegante, de despatrimonialização indi-
vidualiza-se uma tendência normativo-cultural: evidencia-se que no ordena-
mento se fez uma opção, que lentamente vai se concretizando, entre perso-
nalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da pa-
trimonialidade fim a si mesma, do produtivismo, antes, e do consumismo,
depois, como valores)” (COULANGES, 2002, p. 121).
30 MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do su-
jeito virtual à clausura patrimonial. In: FACHIN, Luiz Edson (Org.). Repen-
sando fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janei-
ro: Renovar, 1998, p. 87-114.
31 PERLINGIERI, Pietro.O direito civil na legalidade constitucional. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008, p. 580.
32 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade hu-
mana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 9.
33 TEPEDINO, Gustavo. Itinerário para um imprescindível debate meto-

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