Uma proposta de privatização das relações conjugais

AutorRenata Vilela Multedo
Páginas197-284
Capítulo 3
Uma proposta de privatização
das relações conjugais420
Em família ninguém cresce sem fazer
crescer, nem destrói, sem se autodes-
truir: a solidariedade aqui tudo im-
pregna e tudo alcança.
João Baptista Villela
A família transcendeu do modelo de uma rígida organi-
zação autoritária para tornar-se uma forma de convivência
solidária na qual se desenvolve, de modo livre, a personali-
dade humana.421 Em termos de conjugalidade e de relação
essencialmente volitiva, a família só existe se e enquanto
representa a vontade dos cônjuges, não cabendo ao Estado
restringir sua constituição nem dificultar sua dissolução. A
descoberta do caminho de realização de seu projeto de vida
pertence, de forma exclusiva, ao casal. Quando se trata de
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420 Optou-se pelo termo “conjugais” com único objetivo de distingui-lo das
relações parentais, abordadas no capítulo anterior, englobando-se, portanto,
neste capítulo, as relações convivenciais, formalizadas ou não, inclusive as
homoafetivas.
421 “La famiglia si stacca pertanto dal modello di una rigida organizzazione
autoritaria per divenire una forma di convivenza solidale nella quale si svol-
ge, in modo libero, la personalità umana. La famiglia, in definitiva, si pone in
funzione della persona” (BIANCA, Cesare Massimo. Famiglia: Diritto. Dis-
ponível em: “http://www.treccani.it/enciclopedia/famiglia_%28Enciclope-
dia_delle_scienze_sociali%29/”. Acesso em: 13 jan. 2016).
pessoas livres e iguais, soa ilegítima a heteronomia em ma-
téria tão íntima, sendo a interferência estatal válida tão so-
mente para garantir o exercício da liberdade.422
O direito de família positivado fotografa instantes de
uma realidade mutante.423, 424 Se é assim, só é possível ver as
entidades familiares previstas em lei como meramente
exemplificativas, admitindo-se a liberdade das pessoas de
constituírem o modelo de família que melhor corresponda a
seus anseios. Uma vez engajados por ato de autonomia, um se
torna responsável pela construção do outro. Conviver e esco-
lher permanecer juntos, em expressão da liberdade, origina a
solidariedade, pois faz do outro algo especial a ser cuidado.425
A família recuperou sua função e rompeu com os obstá-
culos em sua vasta casuística, por meio da solidariedade
que emerge nas relações familiares. É grupo unido por de-
sejos e laços afetivos, em comunhão de vida, e passa a exigir
uma “tutela jurídica mínima, que respeite a liberdade de
constituição, convivência e dissolução; a autorresponsabili-
dade; a igualdade irrestrita de direitos, embora com reco-
nhecimento das diferenças naturais e culturais entre os gê-
neros”426; a igualdade entre cônjuges e conviventes; a igual-
dade entre irmãos biológicos, socioafetivos e adotivos; com
respeito aos direitos fundamentais, fundados na solidarie-
dade recíproca, que deve ser protegida acima de quaisquer
interesses patrimoniais.
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422 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima.
O direito das famílias entre a norma e a realidade. São Paulo: Atlas, 2010,
p. 98-99.
423 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do
novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 55.
424 FACHIN, 2003.
425 TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p. 97.
426 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Revista
de Informação Legislativa, Brasília, v. 36, n. 141, p. 99-100, jan./mar. 1999.
O amor e suas definições constituem desde sempre um
enorme corpus, infinitamente construído com base nas mais
diversas reflexões. Sendo assim, qual é o fundamento que le-
gitima uma relação amorosa?427 A resposta jurídica não está
ligada às preferências éticas pessoais, mas, sim, ao quadro
dos princípios dentro do qual deve ser colocado o direito ao
amor.428 Para Stefano Rodotà, esses princípios são igualdade
e liberdade, solidariedade e dignidade, os quais, juntos, con-
correm para definir o alcance da autodeterminação, ao mes-
mo tempo que reclamam a necessidade do recíproco respei-
to como componentes do direito ao amor, fazendo emergir,
assim, seu nítido caráter relacional.429
A família congrega a solidariedade, que une seus inte-
grantes no propósito da vida em comum, e o respeito à in-
dividualidade, que permite o desenvolvimento pessoal de
cada um como um ente singular. É, assim, redimensionada
para promover o valor da personalidade.430 Tantas são as
variáveis culturais, éticas, políticas, econômicas e religiosas
que pressionam e modelam a família e são tantas as impon-
deráveis aspirações e inspirações da pessoa na situação de
família, que nenhum modelo preconcebido e cerrado aten-
deria a umas e outras.431
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427 RODOTÀ, Stefano. Definire l’amore? In: ______. Diritto damore.
Bari: Laterza, 2015. Disponível em: “https://tolinoreader.ibs.it/library/li-
brary.html#!/epub?id=DT0245.9788858123645”. Acesso em: 3 fev.
2016.
428 RODOTÀ, 2015.
429 RODOTÀ, 2015.
430 MENEZES, Joyceane Bezerra de. A família e o direito de personalida-
de. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de; MATOS, Ana Carla Harmatiuk
(Org.). Direitos das famílias por juristas brasileiras. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 92-93.
431 VILLELA, João Baptista. Liberdade e família. O direito de família no

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