A heteronomia estatal no exercício da autoridade parental

AutorRenata Vilela Multedo
Páginas105-196
Capítulo 2
A heteronomia estatal no exercício
da autoridade parental
Uma das armadilhas da infância é
que não é preciso se entender para se
sentir. Quando a razão é capaz de en-
tender o ocorrido, as feridas do cora-
ção já são profundas demais.
Carlos Ruiz Zafón
Tanto a ideia de democracia como a de um modo de-
mocrático de viver iniciam-se dentro dos lares, com o de-
senvolvimento e o crescimento relativamente saudável dos
indivíduos232. Com base nessa premissa, destaca-se que,
embora não haja nada de novo em afirmar que a família é
um dado essencial de nossa civilização, todo o conhecimen-
to empírico sobre aquela só demonstra a necessidade de es-
tudos cada vez mais detalhados.233 O psiquiatra Donald
Winnicott relata que
durante o último meio século tem havido um crescente au-
mento na consciência do valor do lar (infelizmente, essa cons-
ciência provém da compreensão dos efeitos de um lar ruim).
Conhecemos algumas razões que fazem essa longa e exigente
105
232 WINNICOTT, Donald W. A família e o desenvolvimento individual.
Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2011, p. 69.
233 WINNICOTT, 2011, p.59.
tarefa — o trabalho dos pais de compreender os filhos — valer
a pena; e, de fato, acreditamos que esse trabalho provê a única
base real para a sociedade, sendo o único fator para a tendên-
cia democrática do sistema social de um país.234
A família, como base da sociedade, gera mudanças so-
ciais. “Quanto mais famílias democráticas, maior o fortale-
cimento da democracia no espaço público, e vice-versa.
Além disso, e evidentemente, quanto mais democracia
houver nos pequenos grupos, mais democrática será a so-
ciedade na qual eles coexistem.”235 É sob o enfoque das
relações dialéticas, democráticas e concretas entre pais e
filhos — com todas as particularidades que envolvem a
criança e o adolescente em cada etapa de seu desenvolvi-
mento — que se pretende neste capítulo analisar a autono-
mia existencial dos filhos e a heteronomia estatal no exer-
cício da autoridade parental. A ênfase é especialmente vá-
lida diante das hipóteses em que o Estado cerceia as esco-
lhas existenciais da criança e do adolescente, ainda que sob
a autorização e a concordância dos pais.
Como se sabe, a família reproduz padrões culturais no in-
divíduo, proporcionando à criança não só sua primeira instru-
ção sobre as regras sociais predominantes, mas também mol-
dando profundamente seu caráter e utilizando vias sobre as
quais nem sempre ela tem consciência.236 Não à toa, a criança
hoje é vista nas relações parentais como a parte vulnerável —
logo carecedora de maior cuidado. Essa vulnerabilidade justi-
fica a atuação positiva do legislador nas questões concernen-
106
234 WINNICOTT, Donald W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 118.
235 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida da pessoa humana:
estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.
214.
236 LASCH, Christopher. Refúgio num mundo sem coração — a família:
santuário ou instituição sitiada? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 25.
tes ao direito da filiação, garantindo mais proteção aos filhos
e ainda mais responsabilidade aos pais.237 Responsabilidade
esta que consiste, principalmente, em oportunizar o desen-
volvimento dos filhos na formação da própria identidade.
É no âmbito familiar que o indivíduo começa a desen-
volver sua personalidade e a construir sua autonomia. A
responsabilidade dos pais na criação dos filhos menores in-
clui a criação de um ambiente saudável, democrático e há-
bil à formação da autonomia individual do infante.238 Sob
essa orientação se inspirou o legislador brasileiro, ao am-
pliar significativamente o conteúdo da autoridade parental
e dos deveres a esta inerentes, de modo a concretizar a au-
tonomia da criança e do adolescente em seu melhor inte-
resse, priorizando seu desenvolvimento em consonância
com suas particularidades. O interesse do menor, como
destaca Perlingieri, identifica-se “com a obtenção de uma
autonomia pessoal e de juízo, que pode se concretizar na
possibilidade de exprimir escolhas nos mais diversos seto-
res, [...] desde que sejam salvaguardados a sua integridade
psicofísica e o crescimento global de sua personalidade”.239
As mudanças operadas pela Constituição de 1988 e im-
plementadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
deslocaram radicalmente o enfoque das relações parentais,
embasando-as nos princípios da dignidade humana, da pa-
ternidade responsável e da solidariedade familiar. O dever
107
237 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida da pessoa humana:
estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010,
p.447.
238 BODIN DE MORAES, Maria Celina. A nova família, de novo: estrutu-
ras e funções das famílias contemporâneas. Revista Pensar, Fortaleza, v. 18,
n. 2, p. 596-597, mai./ago. 2013.
239 PERLINGIERI, Pietro. A doutrina do direito civil na legalidade consti-
tucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: no-
vos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p.
1003.

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