A família democrática

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas207-234
A família democrática*
Did you, too, O friend, suppose democracy was only for
elections, for politics, and for a party name? I say democracy
is onl y of us e there that it may pass on and co me to its flower
and fruit in manners, in the highest forms of
interaction between [people], and their beliefs —
in religion, literature, colleges and schools —
democracy in all public and private life...**
Walt Whitman
1. Introdução. 2. Democracia em pequenos grupos. 3. O
modelo democrático de família. 4. A democratização da
família no Brasil: o papel da Constituição. 5. O que já
mudou. 6. O que está mudando. 7. O que falta mudar.
8. Conclusão.
* Publicado originalmente em Rodrigo da Cunha PEREIRA (coord.). Família e
dignidade humana — Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São
Paulo: IOB Thomson, 2006, p. 613-640.
** Tradução livre: “Você também, amigo, acreditava que democracia se aplica-
va apenas às eleições, à política e aos partidos? Eu digo que a democracia se aplica
exclusivamente lá onde ela se irradia e gera flores e frutos: nos comportamentos,
nas mais altas formas de interação [entre as pessoas] e crenças – religião, literatu-
ra, universidades e escolas – democracia em toda a vida pública e privada...”.
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1. Introdução
Acusada ao longo de parte do século XX de ser uma instituição
em crise, decadente e destinada a desaparecer,1 a família, nos últi-
mos decênios, transformou-se, passando a responder a muitas das
aspirações individuais presentes no mundo ocidental.2 De fato,
quase quarenta anos depois do movimento cultural de jovens que a
consideravam a principal fonte de repressão e de conformismo so-
cial, a família tem sido vista como um espaço privilegiado de soli-
dariedade e de realização pessoal.
A idéia de ambiente familiar experimenta, na contemporanei-
dade, um momento de esplendor, tendo se tornado um anseio co-
mum de vida, com o desejo generalizado de fazer parte de formas
agregadas de relacionamento baseadas no afeto recíproco.3 Crise
houve, mas não investiu contra a família em si; seu alvo foi o mode-
lo familiar único, absoluto e totalizante, representado pelo casa-
mento indissolúvel, no qual o marido era o chefe da sociedade
conjugal e titular principal do pátrio poder.4
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1 Ver, por todos, David COOPER. A morte da família. São Paulo: Martins
Fontes, 1986 [1974].
2 Com efeito, a afirmativa parece ser verdadeira em relação a todos os países
ocidentais. A propósito, foi dito a respeito da Inglaterra que a vida familiar e o
direito de família sofreram nos últimos trinta anos, naquele país, modificação de
tal maneira significativas que o direito de família em vigor até os anos 70 parecia
mais próximo àquele do início do século XIX do que ao atual. Assim: John
Eekelaar. The End of an Era. In: Sanford N. Katz; John Eekelaar; e M. MacLean.
Cross Currents: Family Law and Policy in the United States and England. Lon-
don: Oxford University Press, 2001, p. 637.
3 Segundo Elizabeth ROUDINESCO: “A família é atualmente reivindicada
como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. Ela é amada, sonhada
e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as
orientações sexuais e de todas as condições” (A família em desordem. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 198).
4 Tal era o modelo de família, concebido pela sociedade burguesa, que se
consolidara desde meados do século XIX, fundado no casamento indissolúvel,
vivido e propagado pela camada social que conduziu a passagem histórica da
sociedade agrária à sociedade industrial. A família burguesa, hoje chamada de
tradicional, tinha sua estabilidade garantida pela legislação civil e pelo exercício
de um rígido controle social. Como se sabe, ambos os fatores alteraram-se pro-
fundamente no último quartel do século XX.

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