O princípio da dignidade da pessoa humana

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas71-120
O princípio da dignidade da pessoa humana*
1. Introdução. 2. O conceito filosófico-político de digni-
dade. 3. A expressão jurídica da dignidade humana;
3.1. A igualdade; 3.2. A integridade psicofísica; 3.3. A
liberdade; 3.4. A solidariedade. 4. A concretização do
princípio: uma cláusula geral de tutela da pessoa.
1. Introdução
Passados mais de quinze anos da promulgação da Constituição
da República volta-se a doutrina, especialmente a constitucionalis-
ta, para o aprofundamento de um de seus conceitos mais relevan-
tes: o princípio da dignidade humana. O substancial número de
obras editadas nos últimos anos1 comprova o interesse — muito
* Publicado originalmente como “O conceito de dignidade humana: substrato
axiológico e conteúdo normativo”. In: I. W. SARLET (org.). Constituição, direitos funda-
mentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 105-147. Repu-
blicado como “O princípio da dignidade humana”. In: _____ (org.). Princípios do direito
civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 1-61.
1 Ver, a propósito do tema, na doutrina brasileira: José Afonso da SILVA. A dig-
nidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de Direito
Administrativo, n. 212. Rio de janeiro, 1998, p. 89 e ss.; Carmen Lúcia Antunes RO-
CHA. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Interesse Pú-
blico, n. 4. Sapucaia do sul (RS), 1999, p. 23-48; Fernando Ferreira dos SANTOS.
Princípio constitucional da dignidade humana. São Paulo: Freitas Bastos, 1999; Da-
niel SARMENTO. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2004; Fabio Konder COMPARATO. A afirmação histórica dos direitos humanos.
3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003; Cleber Francisco ALVES. O princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana: o enfoque social da Igreja. Rio de Ja-
neiro: Renovar, 2001; Ingo Wolfgang SARLET. Dignidade da pessoa humana e direi-
tos fundamentais. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002
[2001]; Antonio JUNQUEIRA DE AZEVEDO. A caracterização jurídica da dignidade da
pessoa humana. RTDC — Revista Trimestral de Direito Civil, v. 9, Rio de Janeiro,
2002, p.3-24; Ana Paula de BARCELLOS. A eficácia jurídica dos princípios constitu-
cionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
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bem-vindo, aliás —, mas é impossível não lamentar o tempo perdi-
do.
Neste qüindênio coube, no caso brasileiro, a uns poucos civilis-
tas a aproximação inicial conteudística ao conceito, através da de-
fesa de uma cláusula geral de tutela da pessoa humana com funda-
mento no art. 1º, III, com o que se tentava reelaborar o princípio-
guia que serviria a reunificar o direito civil. Representava, com
efeito, para os que se dedicavam ao estudo do direito das relações
privadas, um passo decisivo, imprescindível, já que estava por se
estabilizar o entendimento da fragmentação da disciplina,2 caotiza-
da num emaranhado de microssistemas, ignorados tanto a unidade
do ordenamento jurídico como os seus princípios jurídicos gerais,
que, porém, desde há muito não mais se podiam encontrar no
Código respectivo.
De fato, o descompasso existente entre os conceitos essenciais
do direito civil — a sua dogmática, proveniente de institutos roma-
nos reelaborados pela pandectística — e o contexto, inteiramente
diferente, em que tais conceitos permaneciam sendo invocados
gerou uma crise de identidade, ou melhor, uma crise de paradig-
mas.3
No decorrer do século XX, com o advento das constituições
dos Estados democráticos, os princípios fundamentais dos diversos
ramos do direito e também os princípios fundamentais do direito
privado passaram, nos países de tradição romano-germânica, a fa-
zer parte dos textos constitucionais. Também no Brasil, os princí-
pios gerais do direito civil haviam sido transplantados para o texto
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2 Para esta perspectiva, ver Natalino IRTI. L’età della decodificazione. Diritto
e Società, s.n. Padova, 1978, p. 613 e ss.
3 Neste sentido, alude-se à “socialização”, à “despatrimonialização”, à “publi-
cização” e a tantos outros processos que, em comum, evocam a dimensão das
mudanças sofridas pelo direito civil ao longo do século XX. Sobre o sentido de
paradigma, como se sabe, seu uso atual no contexto científico é devido a Thomas
Samuel KUHN (1922-1996) em sua obra The structure of scientific revolution
(1962). Segundo Kuhn, em épocas normais, mais ou menos longas, a ciência
opera com um conjunto de suposições, ou modelos, conhecido por paradigma,
que orienta o desenvolvimento posterior das pesquisas científicas, na busca da
solução para os problemas por elas suscitados; em períodos excepcionais, ou
revolucionários, o velho paradigma fracassa e dá lugar, não sem disputa, a um
novo paradigma.
constitucional. Por isso, os civilistas que não estavam presos à sum-
ma divisio logo advertiram o papel central que a pessoa humana, a
partir da normativa constitucional, havia adquirido. A imprescindi-
bilidade de reconstrução e revalorização de seus princípios gerais
tornava-se evidente.
É, contudo, evidente a insuficiência de se constatar meramente
a transposição dos princípios básicos do texto do Código Civil para
o texto da Lei Maior. É preciso avaliar a mudança do ponto de vista
sistemático, ressaltando que, se a normativa constitucional está no
ápice de um ordenamento jurídico, os princípios nela presentes se
tornam, em conseqüência, as normas diretivas, ou normas-princí-
pio, para a reconstrução do sistema de direito privado.4 Não se
sustenta tal perspectiva metodológica, contudo, tão-somente em
virtude da construção hierarquicamente rígida dos ordenamentos
assim constituídos; vai-se além, reconhecendo, ou pressupondo,
que são os valores expressos pelo legislador constituinte que de-
vem informar o sistema como um todo. Tais valores, extraídos da
cultura, isto é, da consciência social, do ideal ético, da noção de
justiça presentes na sociedade, são, portanto, os valores através dos
quais aquela comunidade se organizou e se organiza. É neste senti-
do que se deve entender o real e mais profundo significado, marca-
damente axiológico, da chamada constitucionalização do direito
civil.5
A Alemanha foi o primeiro país de tradição continental a seguir
este caminho, através do papel desempenhado por sua Corte Cons-
titucional, como guardiã dos direitos fundamentais dos indivíduos
contra agressões provenientes tanto do poder público como de par-
ticulares. O leading case, o chamado “Caso Lüth”, deu-se em
1950, quando um proeminente cineasta já “desnazificado” iria es-
trear um novo filme. Erich Lüth, então presidente do Clube de
Imprensa de Hamburgo, pressionou distribuidores e donos de ci-
nemas para que não o incluíssem em sua programação. Sustentava
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4 Pietro PERLINGIERI. Perfis de direito civil, cit., 1997 [1975], p. 35 e ss.
5 Ver, sobre o conceito, por todos: Pietro PERLINGIERI. Perfis de direito civil,
cit., passim, mas espec. p. 1-14. Ver também Maria Celina BODIN DE MORAES.
A caminho de um direito civil-constitucional, Revista de Direito Civil, v. 65, cit.,
p. 23 e ss., ora neste volume, e Gustavo TEPEDINO. Temas de direito civil. 2. ed.,
2001, espec. p. 1-22.

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