O Fim das Ilusoes Constitucionais de 1988?/The end of 1988 constitutional illusions?

AutorBello, Enzo

"Chamamos de ilusoes constitucionalistas o erro politico pelo qual as pessoas acreditam na existencia de um sistema normal, juridico, ordenado e legal--em suma, 'constitucional' -, embora ele nao exista de fato". Vladimir Mitch Lenin, "Sobre as Ilusoes Constitucionais", julho de 1917 (Lenin, 1985: 83). 1. A Ilusao do Dirigismo Constitucional

A promulgacao da constituicao brasileira em 05 de outubro de 1988 foi festejada por boa parte dos juristas brasileiros como um marco da restauracao democratica e um simbolo das transformacoes politicas e sociais que deveriam ter inicio a partir daquele momento. Eros Roberto Grau, por exemplo, ao analisar a ordem economica constitucional de 1988, enfatizava a possibilidade daquele texto servir de instrumento para as mudancas sociais (Grau, 1991: 198-199, 319-322).

A ideia da constituicao como um plano de transformacoes sociais e do Estado foi trazida ao Brasil por nitida influencia das constituicoes de Portugal de 1976 e da Espanha de 1978. Para a Teoria da Constituicao Dirigente, a constituicao nao e so garantia do existente, mas tambem um programa para o futuro. Ao fornecer linhas de atuacao para a politica, sem substitui-la, destaca a interdependencia entre Estado e sociedade: a constituicao dirigente e uma Constituicao estatal e social. No fundo, a concepcao de constituicao dirigente para Canotilho esta ligada a defesa da mudanca da realidade pelo direito. O sentido, o objetivo da constituicao dirigente e o de dar forca e substrato juridico para a mudanca social. A constituicao dirigente e um programa de acao para a alteracao da sociedade (Canotilho, 2001: V-XXX, 12, 14, 18-24, 27-30, 69-71; Bercovici, 1999: 35-51; Bercovici, 2003b: 114-133; Bercovici, 2008b: 319-327; Lima, 2010: 309-313).

A Constituicao brasileira de 1988 e uma constituicao dirigente. O seu artigo 3 (1) incorpora um programa de transformacoes economicas e sociais a partir de uma serie de principios de politica social e economica que devem ser realizados pelo Estado brasileiro. As normas determinadoras de fins do Estado dinamizam o direito constitucional, isto e, permitem uma compreensao dinamica da constituicao, com a abertura do texto constitucional para desenvolvimentos futuros. Deste modo, explicitase o contraste entre a realidade social injusta e a necessidade de elimina-la, impedindo que a Constituicao considere realizado o que ainda esta por se realizar, implicando na obrigacao do Estado em promover a transformacao da estrutura economico-social.

O artigo 3 da Constituicao de 1988 foi entendido como um instrumento normativo que transformou fins sociais e economicos em juridicos, atuando como linha de desenvolvimento e de interpretacao teleologica de todo o ordenamento constitucional. A norma do artigo 3 da Constituicao de 1988, assim, indicaria os fins, os objetivos a serem perseguidos por todos os meios legais disponiveis para edificar uma nova sociedade, distinta da existente no momento da elaboracao do texto constitucional. Neste sentido, o Estado deveria ser entendido como o "portador da ordem social", o que pressupoe uma vontade politica disposta a colocar o programa constitucional em andamento (Alonso, 1977: 155-158; Bercovici, 2003a: 291-302, 312-315; Bercovici, 2013: 317-320).

Os autores conservadores criticaram a constituicao dirigente com varios argumentos. Essa discussao vai desde o argumento pueril de que por se intitular "dirigente" (ou "governante"), a constituicao seria "totalitaria" por pretender dirigir ou governar a sociedade (Neves, 2018: 410), como se o problema da constituicao dirigente fosse meramente de denominacao, ate a afirmacao de que a constituicao dirigente estaria repleta de "contradicoes" e de "compromissos dilatorios" (Ferreira Filho, 1990: 72, 75-78, 80-83, 86, 98; Faria, 1993: 50-59, 91-92, 98-101, 152-155), atualizando uma argumentacao desenvolvida por Carl Schmitt desde o debate da constituicao de Weimar, entre 1919-1933 (Schmitt, 1993: 28-36, 128-129).

A critica feita a constituicao dirigente pelos autores conservadores diz respeito ainda, entre outros aspectos, ao fato de a constituicao dirigente "amarrar" a politica, substituindo o processo de decisao politica pelas imposicoes constitucionais. Ao dirigismo constitucional foi imputada a responsabilidade maior pela "ingovernabilidade" (Ferreira Filho, 1995: 5, 21-23, 142). O curioso e que sao apenas os dispositivos constitucionais relativos a politicas publicas e direitos sociais que "engessam" a politica, retirando a liberdade de atuacao do legislador. E os mesmos criticos da constituicao dirigente sao os grandes defensores das politicas de estabilizacao e de supremacia do orcamento monetario sobre as despesas sociais. A imposicao, pela via da reforma constitucional e da legislacao infraconstitucional, das politicas ortodoxas de ajuste fiscal e de liberalizacao da economia, nao acarretou qualquer manifestacao de que se estava "amarrando" os futuros governos a uma unica politica possivel, sem qualquer alternativa.

Ou seja, a constituicao dirigente das politicas publicas e dos direitos sociais e entendida como prejudicial aos interesses do pais, causadora ultima das crises economicas, do deficit publico e da "ingovernabilidade". A constituicao dirigente invertida, isto e, a constituicao dirigente das politicas neoliberais de ajuste fiscal e vista como algo positivo para a credibilidade e a confianca do pais junto ao sistema financeiro internacional. Esta, a constituicao dirigente invertida, e a verdadeira constituicao dirigente, que vincula toda a politica do Estado brasileiro a tutela estatal da renda financeira do capital, a garantia da acumulacao de riqueza privada (Bercovici & Massonetto, 2006).

A grande ilusao que a teoria da constituicao dirigente trouxe ao constitucionalismo pos 1988 foi a do instrumentalismo constitucional. A teoria da constituicao dirigente e uma teoria da constituicao autocentrada em si mesma, uma teoria "auto suficiente" da constituicao. Ou seja, criou-se uma teoria da constituicao tao poderosa, que a constituicao, por si so, resolve todos os problemas. O instrumentalismo constitucional e, desta forma, favorecido: acredita-se que e possivel mudar a sociedade, transformar a realidade apenas com os dispositivos constitucionais. Consequentemente, o Estado e a politica sao ignorados, deixados de lado. A teoria da constituicao dirigente, portanto, e uma teoria da constituicao sem teoria do Estado e sem politica. E o paradoxal e que a constituicao so pode ser concretizada por meio da politica e do Estado (Bercovici: 2003b).

  1. A Realidade da "Doutrina Brasileira da Efetividade"

    Desde o ingresso do Brasil no chamado "constitucionalismo social", ainda com a promulgacao da Constituicao de 1934, ha a presenca constante de parcela da doutrina juridica que tenta deslegitimar a todo tempo o conteudo social e economico do texto constitucional, utilizando para tanto a persistente categoria de "norma programatica". Essa parcela da doutrina continua reforcando o distanciamento entre a Constituicao e as politicas sociais ou de ampliacao de direitos, ao definir, em sua imensa maioria, os direitos sociais como "normas programaticas", ou seja, nao como direitos, mas como meras intencoes politicas ou ideologicas.

    Embora seja uma concepcao presente no debate constitucional desde as constituicoes do Mexico, de 1917, e de Weimar, de 1919 (e, entre nos, desde 1934), a nocao de norma programatica foi desenvolvida de maneira mais aprofundada pelo italiano Vezio Crisafulli, a partir das disputas em torno da concretizacao da Constituicao da Italia de 1947 (Crisafulli, 1952a: 51-83; Crisafulli, 1952b: 99-111). A concepcao de norma programatica teve enorme importancia na Italia, ao afirmar que os dispositivos sociais da constituicao eram tambem normas juridicas, portanto, poderiam ser aplicadas pelos tribunais nos casos concretos.

    As ideias de Crisafulli tiveram grande repercussao e sucesso no Brasil (2). No entanto, sua aplicacao pratica, tanto na Italia como no Brasil, foi decepcionante. Norma programatica passou a ser sinonimo de norma que nao tem qualquer valor concreto, contrariando as intencoes de alguns de seus defensores (3), bloqueando, na pratica, a concretizacao da constituicao e, especialmente, dos direitos sociais. Mas uma ressalva deve ser feita: a construcao de um corpo teorico acabado e sistematizado no sentido da nao concretizacao dos direitos sociais so ira ocorrer ao final da decada de 1960, sob a ditadura militar, com Jose Afonso da Silva e a sua tese sobre a "aplicabilidade das normas constitucionais" (Silva, 1998), que da origem a paradoxal e autointitulada "doutrina brasileira da efetividade" (Barroso, 2005: 61-77), que impede o avanco da teoria constitucional brasileira ate hoje.

    O que e a "doutrina brasileira da efetividade"? Trata-se de campo teorico de perfil estritamente dogmatico do direito constitucional brasileiro, com inspiracao exclusivamente em autores europeus e estadunidenses, que desenvolve intensa producao bibliografica a partir da decada de 1990. Seu ponto de partida e o debate sobre a natureza das normas constitucionais de acordo com a sua eficacia e os limites da sua aplicabilidade, a partir da obra de 1968 de Jose Afonso da Silva (Silva, 1998) - que classifica as normas constitucionais como de eficacia plena, contida e limitada. A intencao e ir alem da enfase nos planos da existencia, validade e eficacia das normas constitucionais, para se investir na seara da efetividade, entendida como esfera de concretizacao das normas constitucionais, especialmente as de direitos fundamentais.

    Qual a proposta teorica da "doutrina brasileira da efetividade"? Ha duas premissas fundamentais: (i) a existencia de um deficit de concretizacao das normas constitucionais ("frustracao constitucional") (4) e a concepcao de que o caminho para elas passarem a ter plena efetividade passa unicamente pelas vias juridicas institucionais (interpretacao constitucional e argumentacao...

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