Fim do constitucionalismo autoritário? Os debates sobre a permanência da Lei de Segurança Nacional na redemocratização (1978-1987)/End of the authoritarian constitutionalism? Debating the permanence of the Brazilian National Security Law during the democratization (1978-1987).

AutorGuerra, Maria Pia
  1. Introdução

    Desde 2020, uma série de medidas governamentais trouxeram a Lei de Segurança Nacional (LSN) de 1983 ao centro dos debates públicos. No âmbito do governo federal, o ministro da Justiça requisitou inquérito para a investigação de dois jornalistas e o ministro da Saúde sugeriu a punição dos servidores que divulgassem informações sem autorização hierárquica (AMADO, 2020; EDITORIAL, 2020). No poder judiciário, os ministros do Supremo Tribunal Federal deliberaram sobre inquérito fundado na LSN para apurar ofensas contra a corte e seus integrantes (BRASIL, 2019). Mais recentemente, diante das crÃÂticas quanto àretomada da lei de 1983, a Câmara dos Deputados aprovou novo projeto de lei de segurança nacional. Os dilemas da utilização de uma lei produzida em contexto autoritário não têm passado despercebido e por vezes são apresentados como uma retomada ou uma permanência autoritária no paÃÂs, fruto de uma transição inconclusa.

    Este artigo oferece um quadro interpretativo para qualificar o argumento da permanência autoritária. Argumentamos que a Lei de Segurança, na ditadura, adquiria sentido menos pelo seu conteúdo material do que pelas conexões que criava entre os centros decisórios de poder, ou seja, pelo seu arranjo institucional. Dessa forma, como metáfora, a LSN pode ser compreendida como um forte de guerra, ou um centro de operações, um aparato que àépoca em que foi construÃÂdo servia para conectar agentes incumbidos de certos protocolos. Uma vez deposto o regime que dele se servia, este forte ou centro de operações permaneceu como uma ruÃÂna, apto a ser reocupado por outros agentes, que estabeleceram outras conexões com outros centros decisórios. A lei é a mesma, o sentido distinto.

    O que nomeamos conexões, aqui, nada mais são do que normas constitucionais. Formulamos, assim, um critério de distinção entre o constitucionalismo autoritário e o constitucionalismo democrático, que permite destacar as continuidades e descontinuidades da utilização da lei de segurança. A sÃÂntese do argumento é a seguinte: a ditadura militar produziu um tipo especÃÂfico de pré-compromisso imperativo de divisão poderes, denominado constitucionalismo autoritário, que servia às forças armadas para organizar internamente as suas disputas polÃÂticas. Este pré-compromisso constituiu-se por meio de um arranjo institucional e de uma infraestrutura legislativa de distribuição de competências legais, de que é exemplo a LSN. A longa redemocratização alterou este arranjo de divisão de poderes, mantendo, porém, alguns elementos. Em um primeiro momento, o projeto de distensão polÃÂtica, na sua tentativa de institucionalizar o que na visão de seus atores militares era uma "revolução", buscou estabilizar a divisão de poderes anteriores. Nesta fase, o Supremo Tribunal Federal (STF) anunciou um projeto próprio de transição, pelo qual afastava a tutela militar, sem, contudo, ampliar as possibilidades democráticas. Em um segundo momento, a Assembleia Nacional Constituinte retirou parte do controle militar sobre a vida institucional civil, deixando, porém, no campo da segurança, dispositivos de competência acionáveis, no futuro, em outro arranjo de organização de poderes. Neste ponto, não são apenas as competências militares que podem vir a ser acionadas pelas forças armadas, mas também são outros atores institucionais que podem invocar os dispositivos da LSN. Na imagem utilizada acima, o forte não apenas mudou de mãos, mas inseriu-se em uma nova forma de ocupação territorial--novas guerra, novas conexões, novo sentido.

    Este quadro interpretativo traz duas consequências para a análise das manifestações mais recentes de utilização da LSN--e para a análise dos projetos de nova lei de segurança nacional. Primeiro, o quadro leva a afirmar que a reativação da LSN, após algum perÃÂodo de dormência nos debates públicos, não significa a continuidade ou a retomada da ditadura militar, embora possa sinalizar uma transformação de regime atual ofensiva àdemocracia. Segundo, o quadro leva a redirecionar o foco de avaliação dos problemas, passando da análise do conteúdo material dos tipos penais da lei de segurança nacional--conquanto permaneça relevante--para a análise das conexões institucionais que permanecem, ainda hoje, àsombra do constitucionalismo pós-1988, como reminiscências ou ruÃÂnas do passado. De fato, existiu uma mudança qualitativa na passagem entre o constitucionalismo autoritário e o constitucionalismo democrático pós-1988, mas restaram também temas pouco explorados, como a organização das polÃÂcias e a relação do judiciário com os órgãos de investigação.

    O artigo se divide em três partes. Na primeira, elaboramos a distinção entre constitucionalismo autoritário e democrático que informará tanto a descrição do processo como a crÃÂtica aos seus limites. Este critério permite explicar por que a ditadura precisou aprovar uma legislação para dar tratamento jurÃÂdico aos impulsos repressivos. Na segunda parte, relatamos o processo de edição da LSN em 1983, parte da distensão que modificou o modelo da lei de segurança de 1969. Na terceira parte relatamos as primeiras repercussões deste projeto na jurisprudência do STF. A combinação entre a segunda e a terceira partes mostra a participação do judiciário no perÃÂodo de transição polÃÂtica. Como veremos, o tribunal, embora não estivesse vinculado às expectativas militares, alinhava-se, a seu modo, a um projeto de democracia controlada. O resultado foi uma lei reocupada por atores com projetos diversos, conquanto intrigantemente similares. Nas conclusões, apontamos indicativos da transformação da segurança nacional nos anos seguintes, assim como os desafios democráticos pendentes no paÃÂs.

    O foco será o debate imediatamente anterior e posterior àaprovação da lei em 1983, embora o critério seja pontualmente ampliado para a compreensão das transformações anteriores e subsequentes. Por um lado, no aspecto descritivo, o critério constitucional vem complementar os estudos de segurança, pois permite observar a participação do poder judiciário, que por vezes não recebe a devida atenção. Por outro lado, no aspecto normativo, tendo em vista a retomada dos debates públicos, o critério constitucional traz parâmetros mÃÂnimos de existência de uma legislação desta natureza em uma democracia. Caso o Congresso Nacional opte pelo desafio de produzir uma norma de segurança nacional adequada àdemocracia, deve ao menos enfrentar o problema remanescente da organização institucional da segurança.

  2. O constitucionalismo autoritário

    Um dos temas que mais desafiam a análise jurÃÂdica do regime da ditadura militar é o da legalidade autoritária. Nesta primeira parte do texto, formularemos, com base na literatura jurÃÂdica e histórica sobre o perÃÂodo, um conceito de constitucionalismo autoritário, que explica a necessidade da edição de uma legislação como a de segurança nacional pelo governo militar tanto nos anos iniciais como no perÃÂodo em que já anunciava a transição para um governo de civis.

    O paradoxo da legalidade autoritária aparece já no primeiro ato institucional da ditadura. A fundação do poder autoritário surge como oxÃÂmoro: ao mesmo tempo que se diz ilimitado, resolve se autolimitar (OLIVEIRA; PATRUS, 2016). Na visão dos seus ideólogos, a "revolução" é poder constituinte que, para evitar a radicalização, mantém a Constituição de 1946, a indicar que o golpe teria sido instrumental e extra-normativo. Considerando esta pretensão inicial dos militares, uma das linhas historiográficas sobre o perÃÂodo sustenta que a limitação do poder teria sido uma farsa (GALLO, 2014). Quando muito, existiriam dois nÃÂveis de legalidade: uma atuação legal visÃÂvel e outra clandestina, amparada apenas no nÃÂvel simbólico. A consequência imediata é pensar que, porque na prática o poder autoritário é ilimitado, não parece ter muita utilidade examinar o fenômeno jurÃÂdico. Existiria o constitucionalismo e existiria a farsa.

    Pesquisas em história constitucional, contudo, têm demonstrado uma dimensão jurÃÂdica e constitucional no regime militar (DE CHUEIRI; CÂMARA, 2015), uma vez que mesmo os parâmetros fixados pelo regime abriram margem para limites ao poder autoritário. Como apontam Barbosa e Paixão (2008), "a ditadura não foi capaz de domar completamente o direito". Mas em que medida pode ser eficaz a limitação do poder feita pela própria ditadura? Seria possÃÂvel falar em um constitucionalismo autoritário?

    A pergunta remete àdefinição mais elementar de constitucionalismo e divisão de poderes. Robert Barros (2002), em estudo sobre a ditadura chilena, examina quando um governo autoritário consegue, de modo efetivo, formular um pré-compromisso. Para isso, Barros distingue limites institucionais de outros conceitos tradicionais sobre a relação entre democracia e ditadura. Por limites institucionais não se está a falar de constitucionalismo republicano ou liberal, nem de Estado de Direito (rule of law), nem de limites prudenciais estrategicamente utilizados por um governo autoritário.

    Em primeiro lugar, em relação ao constitucionalismo, a diferença se daria porque, em suas versões republicanas e...

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