Giorgio Agamben e Simone Weil, críticos da tradição jurídica romana/Giorgio Agamben and Simone Weil, critics of the roman legal tradition.

AutorNeto, Benjamim Brum

INTRODUÇÃO (1)

Apesar da noção de pessoa não gozar de um estatuto de termo técnico nos trabalhos de Giorgio Agamben, é pela lógica e pela história do conceito que podemos encontrar sua pertinência para pensar sua obra. Algo diverso acontece em Roberto Esposito, que trata da noção de pessoa e de impessoal explicitamente, sobretudo em Terza persona. Politica della vita e filosofia dell'impersonale, de 2007 (2). Em As pessoas e as coisas, Esposito dá inÃÂcio àsua reflexão crÃÂtica sobre a tradição de que somos herdeiros, colocando em evidência um princÃÂpio fundacional da nossa tradição: "Se há um postulado", diz ele, "que parece organizar a experiência humana desde seus primórdios, é o da divisão entre pessoas e coisas. Nenhum outro princÃÂpio possui uma raiz tão profunda na nossa percepção, e também na nossa consciência moral, quanto o da convicção de que não somos coisas--já que as coisas são o contrário das pessoas" (ESPOSITO, 2016, p. 2). O interesse pela obra de Esposito é aqui estratégico, pois sua reflexão sobre a noção de pessoa se nutre dos escritos de Simone Weil, de Marcel Mauss e de Yan Thomas, que são referências compartilhadas com Agamben. No caso deste, a reflexão sobre a pessoa toma outros contornos; apesar disso, a partir deste conceito podemos compreender alguns traços da investigação da técnica jurÃÂdica em suas investigações polÃÂticas, jurÃÂdicas e teológicas. Pois, como nos lembra o próprio Mauss, cujo trabalho sobre a noção de pessoa Agamben em mais de uma oportunidade se refere como exemplar: "a 'pessoa' é mais do que um elemento de organização, mais do que um nome ou o direito a um personagem e uma máscara ritual, ela é um fato fundamental do direito" (MAUSS, 2003, p. 385): um verdadeiro, para dizer com John Locke, forensic term (3).

Podemos, de saÃÂda, encontrar um motivo biográfico para um estudo sobre esse conceito na economia do pensamento agambeniano. É bem conhecido o fato de que Agamben dedicara sua tese de láurea em filosofia do direito ao pensamento de Simone Weil. (4) Uma das marcas mais significativas que a crÃÂtica de Weil aportou ao pensamento jurÃÂdico moderno diz respeito precisamente ànoção de pessoa. Mas há também um segundo motivo, um verdadeiro motivo, que aqui nos interessa especulativamente: toda a reflexão agambeniana sobre a vida nua ganha inteligibilidade àluz do problema que a noção de pessoa traz junto com a tradição jurÃÂdica latina; o conceito de vida nua constitui, por assim dizer, o paradigma de todo esse léxico jurÃÂdico-cristão que cada vez mais invade o terreno da moral, impedindo que uma reflexão efetivamente ética tenha lugar. Nossa hipótese, portanto, é que a noção de vida nua possa ser pensada não apenas a partir da noção de bloB Leben do ensaio de 1921 de Walter Benjamin, mas também a partir da noção de pessoa, ou melhor, a partir daquilo que resta após a operação de isolamento que esse dispositivo realiza. (5) Assim como a vida nua é aquela vida de cuja forma fora separada, a pessoa corresponde no ordenamento jurÃÂdico àquele elemento que um indivÃÂduo deve conter para que seja reconhecido como membro de uma determinada sociedade--que ao longo do tempo, no interior da tradição jurÃÂdica, passa de uma noção de sui iuris (6) àquela de sujeito de direito--, sendo que esse elemento corresponde, desde a origem, àquilo que é separado e sobreposto ao indivÃÂduo concreto (homo). Essa ideia é bem descrita pelo historiador do direito romano, Yan Thomas, nos seguintes termos: "o direito opera uma verdadeira dissociação dos sujeitos e dos corpos para compor pessoas (THOMAS, 1998, p. 99).

Se em Agamben é o dispositivo da exceção que isola no vivente homem o sentido jurÃÂdico da vida, produzindo por meio dessa violência originária a vida nua, em Esposito a pessoa aparece como mais que um mero conceito: trata-se de um verdadeiro dispositivo performativo que age em nossa cultura desde longa data e cuja potência especÃÂfica opera um efeito análogo àquele descrito pela exceção, exposto por Esposito em termos de separação, seleção e exclusão (ESPOSITO, 2017, p. 206). Se Agamben, no inÃÂcio de O poder soberano e a vida nua, destaca a fundação da pólis como exclusão (mesmo que inclusiva) da zoé (que se torna vida nua) em favor da bÃÂos, em Esposito a "pessoa é o termo técnico que separa a capacidade jurÃÂdica da naturalidade do ser humano e que assim distingue cada homem do seu próprio modo de ser--é a não coincidência, ou mesmo a divergência, no homem, do ser em respeito ao seu modo de ser" (ESPOSITO, 2017, p. 207). O corolário dessa leitura também deve ficar evidente: a vida nua corresponde àquilo que foi separado de sua forma qualificada, a qual corresponde, por sua vez, ànoção de pessoa, isto é, àparte que formalmente se conferiria proteção. Na economia dos escritos de Agamben, os conceitos antÃÂteses dessa estrutura que cinde o homem e a vida são o impessoal, mas também as noções de serqualquer, de uso de si e de forma-de-vida. Além disso, essa investigação também nos aponta para a importância da noção de sagrado em Agamben numa fase formativa, ainda desprovido do refinamento que esse conceito ganhará ao longo de Homo sacer. Tudo isso nos permite perceber que a crÃÂtica àvida nua enquanto o fundamento do poder soberano aparece como uma crÃÂtica àtécnica de isolamento, que ninguém menos que os jurisconsultos latinos elaboraram com tanta maestria.

Como já anunciamos, um nome nesse cenário crÃÂtico-genealógico é imprescindÃÂvel. Trata-se de Simone Weil. A respeito da conexão de sua leitura de Weil e de suas investigações arqueológicas posteriores, Agamben nos relata em Autoritratto nello studio:

Em todo caso, fiquei então particularmente impressionado com a crÃÂtica da noção de pessoa e de direito desenvolvida em La personne et le sacré. Foi a partir desta crÃÂtica que li o ensaio de Mauss sobre a noção de persona e ficou claro para mim o nexo que conjuga intimamente a pessoa jurÃÂdica e a máscara teatral e posteriormente a teologia do indivÃÂduo moderno. Talvez a crÃÂtica do direito, que nunca mais abandonei a partir do primeiro volume de Homo sacer, tenha nesse ensaio de Weil sua primeira raiz (AGAMBEN, 2017a, p. 51). (7) Percebemos, assim, que a superação do vocabulário jurÃÂdico-teológico da pessoa se impõe como tarefa preliminar para se pensar um novo direito, um direito ético, um direito, quem sabe, não-jurÃÂdico, extra-jurÃÂdico. Auschwitz, como se sabe, é pensado por Agamben como o acontecimento-limite dessa experiência ocidental de um logos jurÃÂdico que separa as coisas de sua forma, adquirindo poder sobre elas, seja pela expropriação do homem daquele atributo que lhe torna humano, seja pela imputação (8), que corresponde àcapacidade do direito de atribuir responsabilidade a um indivÃÂduo por suas ações (reflexão que ganha espaço em Karman). (9) E se Auschwitz é o acontecimento-limite dessa experiência, a experiência última na qual culmina a lógica da separação da linguagem jurÃÂdica, então a reflexão sobre ela pode ser compreendida como uma tentativa de pensar a partir disso um novo começo, uma nova terra ethica, que se erige a partir da imanência da vida e que se projeta para além das instituições teológico-jurÃÂdicas: "que se possa perder dignidade e decência para além de qualquer imaginação, que exista vida na degradação mais extrema, esse deve ser o ponto de partida de uma ética pós-Auschwitz" (AGAMBEN, 2008, p. 76). Essa reflexão também não deixa de ecoar aquelas de Arendt, para quem "o que há de assustador no surgimento do totalitarismo não é o fato de ser algo novo, mas o fato de ter trazido àluz a ruÃÂna de nossas categorias de pensamento e de nossos critérios de julgamento" (ARENDT, 2008, p. 341). Assim, onde há este direito, não há a nossa ética. É tendo em vista esse horizonte que Agamben lança como tarefa a realização dessa "nova ciência".

POLÍTICAS DO (IM)PESSOAL

Em seu último ano de vida, em 1943, em Londres, Simone Weil escreveu o ensaio A pessoa e o sagrado, publicado, no entanto, apenas em 1950, na revista La Table ronde, sob o tÃÂtulo La personnalité humaine, le juste et l'injuste. Somente em 1957 o escrito será republicado com o tÃÂtulo La personne et le sacré e integrará a antologia de textos conhecidos como Ãcrits de Londres. O objetivo do ensaio é bastante claro desde suas primeiras linhas. Trata-se de problematizar o vocabulário personalista consagrado pela tradição da Revolução Francesa, notadamente na Declaração dos direitos do homem e do cidadão. (10) De modo semelhante ao que fará Arendt, posteriormente, no bastante comentado capÃÂtulo de Origens do totalitarismo, denominado O declÃÂnio do Estadonação e o fim dos direitos do homem, (11) Weil recupera uma clássica crÃÂtica marxista àconcepção burguesa de direito, o qual implicaria uma cisão entre duas realidades distintas: o homem e o cidadão. Para ela, a distinção entre o homem e sua pessoa (cidadão, nacional) nunca foi inofensiva. Encontramos aàum princÃÂpio metodológico importante seu: "lá onde há um grave erro de vocabulário", afirma Weil, "é difÃÂcil que não haja também um grave erro de pensamento" (WEIL, 2017, p. 26). Weil nos indica por meio de um exemplo de que modo essa confusão...

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