Guerreiros ou guardiões? Notas sobre o conceito de polícia/Warriors or guardians? Notes on the concept of police.

AutorRolim, Marcos
  1. Introdução

    Os recentes protestos populares contra a violência policial nos Estados Unidos e a reiterada impunidade de policiais envolvidos em atos de brutalidade assinalam um momento agudo de uma crise do policiamento que prioriza a força como abordagem básica. No relatório da Força Tarefa sobre o policiamento do século XXI criada pelo presidente Barack Obama (President's Task Force on 21st Century Policing, 2015), se sustentou que os esforços de reforma das polÃÂcias fossem orientados pela noção de que policiais devem se conceber como "guardiões" e não mais como "guerreiros". A mudança proposta envolve a superação do tipo de mentalidade dos policiais que se veem como "soldados na guerra sem trégua contra o crime" (STOUGHTON, 2016b) em direção àideia de que policiais devem atuar com as comunidades, como protetores, percebendo que sua autoridade é resultado do consentimento do público.

    Até há pouco, não havia evidências a respeito da existência dessa "moldura guerreiro-guardião". A polarização entre as duas possÃÂveis orientações psicológicas era pensada metodologicamente, mas não como realidade empÃÂrica. Recente trabalho de McLean et al (2019), entretanto, realizado em dois departamentos de polÃÂcia nos Estados Unidos, com respostas de 82.4% dos policiais, encontrou que as duas orientações existem efetivamente e condicionam perfis policiais distintos (1).

    (...) as mentalidades do guardião e do guerreiro foram relacionadas a resultados bastante diferentes. Por um lado, a mentalidade do guardião foi associada a maiores prioridades de comunicação durante as interações com os cidadãos e menos apoio ao uso abusivo da força. Por outro lado, a mentalidade do guerreiro foi associada a prioridades de comunicação mais fracas e a prioridades de controle mais fortes durante as interações com os cidadãos, bem como a atitudes mais positivas em relação ao uso abusivo da força (tradução nossa) (2). Nesse artigo, discutimos o quanto o conceito de polÃÂcia pode se associar a essas duas orientações, sugerindo que a mudança a ser construÃÂda no policiamento exige, também, uma nova teoria sobre o significado dessa atividade. Para isso, fazemos a crÃÂtica ao conceito de polÃÂcia proposto pelo professor Egon Bittner (1921-2011), seguramente o mais influente na literatura especializada. Ato contÃÂnuo, apresentamos um novo conceito, que nos parece mais consentâneo aos desafios do policiamento nas democracias contemporâneas e que poderá impactar o processo de seleção de novos policiais com a mentalidade dos guardiões para melhor alinhar suas atividades às tarefas de proteção e promoção de direitos.

  2. O conceito tradicional, a polÃÂcia como força

    O tema do uso da força é central na discussão a respeito do próprio conceito de polÃÂcia. A maior parte dos pesquisadores tem se alinhado àideia de que as instituições policiais se distinguem de todas as demais pelo fato de que seus membros possuem a possibilidade legal do emprego da força, o que reverbera o conceito weberiano do monopólio do uso legÃÂtimo da força fÃÂsica como caracterÃÂstica própria do Estado. Para Bayley (2001), por exemplo, o uso legÃÂtimo da força no âmbito interno da nação (o que permitiria separar o emprego da força pelas FFAA), assinala o que há de especÃÂfico na função policial. Por este motivo, ele entende que são também forças policiais quaisquer instituições que exerçam funções de guarda ou vigilância, ainda que não sejam chamadas de polÃÂcias. Na mesma linha, Monet (2001) sustenta que, além da autorização para o uso legÃÂtimo da força - que pode ser eventualmente encontrada em outras atividades profissionais como, por exemplo, na enfermagem psiquiátrica ou na tutela de presos, a polÃÂcia seria caracterizada pelo fato de poder empregar seus recursos coercitivos contra qualquer pessoa em situações que nunca podem ser completamente definidas a priori.

    No Brasil, o tema tem sido objeto de poucos trabalhos acadêmicos, destacandose os esforços de Jacqueline Muniz e DomÃÂcio Proença. Também para estes autores, o mandato policial está essencialmente vinculado àautorização para o emprego da força nos termos da lei; sob limites claros, portanto, e deverÃÂamos compreender o uso da força pela polÃÂcia apenas no sentido de sua utilidade para produzir obediência e respeito às leis; ou seja: para mudar comportamentos tidos como indesejáveis. Nessa abordagem, o uso real da força e sua possibilidade de uso integrariam um único fenômeno (MUNIZ; PROENÇA, 2003).

    Estas posições são tributárias do trabalho de Bittner (1980) que ofereceu a definição mais amplamente aceita sobre a natureza especÃÂfica do trabalho policial, vinculando-a àpossibilidade do emprego da força. Isso não significa que Bittner reduza o trabalho policial àaplicação da lei ou às tarefas de repressão que exigem o emprego da força. Pelo contrário, ele afirma, taxativamente, que, para a grande maioria dos policiais, as circunstâncias em que o emprego da força é necessário são eventos raros quando comparados ao conjunto das intervenções policiais:

    A relativa probabilidade do recurso real àforça varia bastante de uma tarefa para outra, embora geralmente seja baixa. É virtualmente zero para alguns policiais. Para outros, eleva-se ao nÃÂvel de uma bem improvável, mas ainda assim perceptÃÂvel possibilidade, e convém manter-se permanentemente alerta. Assim, ser policial significa estar autorizado, e ser exigido, a agir de modo coercitivo quando a coerção for necessária, segundo o determinado pela avaliação do próprio policial das condições do local e do momento (BITTNER, 2003: 20). Assim, o que Bittner sustenta é que a natureza da função policial pressupõe o poder de submeter alguém, contra a sua vontade, seja para alterar um comportamento tido como inadequado ou de risco, seja para efetuar uma prisão ou conduzir suspeito de atividade ilÃÂcita. Esse mandato policial seria, para o autor, executado de três formas distintas: a) pela tentativa de negociação, b) pela intimidação e c) pela "proeza fÃÂsica".

    A reflexão terminou se impondo também por conta da sutileza de seu raciocÃÂnio (3). Em sÃÂntese, para Bittner, aquilo que pode distinguir a função policial das demais é a possibilidade do uso da força, o que estaria sempre presente, mesmo quando - como ocorre na maioria das vezes - os policiais não fazem uso dela.

    Devemos enfatizar, entretanto, que com a concepção da centralidade da capacidade do uso da força no papel da PolÃÂcia não se pode chegar àconclusão de que as rotinas ordinárias da ocupação policial são constituÃÂdas pelo exercÃÂcio real dessa capacidade. É muito provável, embora nos faltem informações a respeito, que o uso da coerção fÃÂsica e da repressão sejam raras para os policiais como um todo. O que importa é que o procedimento policial é definido pela caracterÃÂstica de não se poder opor-se a ele durante seu curso normal e, se acontecer tal oposição, a força poderá ser usada. Isso é o que a existência da PolÃÂcia disponibiliza para a sociedade. Desse modo, a questão: 'o que os policiais devem fazer?' é quase completamente idêntica àquestão: 'que tipos de situações exigem corretivos que são coercitivos e não negociáveis?' (BITTNER, 2003: 132-133). A definição teórica proposta para se compreender a própria atividade policial, assim, não estaria na dependência de uma comprovação empÃÂrica a respeito do emprego efetivo da força como centralidade. Em qualquer atividade desenvolvida pelos policiais, entretanto, encontrarÃÂamos um substrato representado pela noção, compartilhada socialmente, de que os profissionais da área exercitam uma autoridade cujo poder coercitivo é evidente e que, no limite--caso as coisas não andem como se espera--poderão recorrer àforça para assegurar seus comandos. Muniz et al (1999) oferecem um bom exemplo a respeito:

    Há momentos, exatamente nestas situações, em que o policial assume o papel de um coordenador que decide o que será feito, comanda as ações e determina os comportamentos. Este é o caso, por exemplo, de um socorro a vÃÂtimas de acidente de trânsito: parar o trânsito, cercar a área, afastar os transeuntes, chamar a ambulância, assegurar o seu acesso, lidar com parentes e vÃÂtimas, respaldar as decisões médicas dos atendentes, coordenar o apoio para um trânsito rápido até o hospital, e mesmo colaborar para a presteza do atendimento das vÃÂtimas. Tudo isso seria impossÃÂvel sem a perspectiva de compelir, o que pressupõe, uma vez mais, a possibilidade do uso de força para obter obediência. A par dos evidentes méritos desta posição, cabe refletir se ela permite, de fato, melhor compreender o trabalho policial. Até que ponto, no mais, ela pode auxiliar na complexa tarefa de, para além do trabalho "realmente existente", estruturar as bases para aquilo que deva ser o trabalho policial no Estado Democrático de Direito (4). Afinal, o esforço pela construção de uma teoria do policiamento seria mesmo desprovido de sentido não estivesse a própria ideia de policiamento inserida em um quadro mais amplo do qual partimos e que envolve uma posição a respeito de, pelo menos, alguns conceitos básicos como os de consentimento, prevenção, força, coerção e violência e noções a respeito de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT