"Humanifesto" para a descolonização da Criminologia e da Justiça/Humanifesto of the Decolonization of Criminology and Justice.

AutorAgozino, Biko

O nascimento do paradigma da descolonização (2)

He tangata ia i mahi ngã mahi Nunui, hein peechi te kino Kia tu ko te rangi-marie Het orange no nga iwi Katoa I tea o ko tana tohu "Ele foi um homem que fez grandes feitos para suprimir o mal a fim de que a paz reinasse como meio de salvação para todas as pessoas na terra" Monumento a Te Whiti o Rogomai em Parihaka, citado por Keenan (2015, p. 1). A Criminologia Descolonial não pressupõe que as sociedades originárias fossem um paraÃÂso de tranquilidade antes de serem conquistadas e colonizadas nem que a descolonização implantaria uma sociedade sem crime. Na verdade, a descolonização é uma questão de justiça social sob o pressuposto de que invasão, sequestro, escravidão e assassinato em massa de povos originários representam crimes orquestrados contra a humanidade e, por isso, a descolonização deveria estar no coração da teoria criminológica, em vez de ser ignorada, excluÃÂda ou relegada às margens. Eu argumento que é do interesse da humanidade e dos criminólogos descolonizar o mundo inteiro e a disciplina da criminologia, já que é perigoso para qualquer disciplina ignorar desenvolvimentos importantes que sejam relevantes às suas questões centrais, especialmente quando se referem a ameaças àhumanidade. Uma perspectiva descolonialcêntrica sugere que criminólogos devam situar esse paradigma no centro da disciplina, aprendendo com a história dos povos colonizados e com a maneira como a luta para erradicar os crimes da colonização tem sido travada por aliados. É verdade que povos originários também conviviam com crimes e tinham sistemas de punição antes de serem colonizados, mas os criminólogos formados na tradição ocidental têm ignorado tanto os grandiosos crimes do colonialismo quanto o que poderia ser aprendido com essas comunidades e seus aliados em relação às formas de tentar reparar esses danos e desenvolver um novo conhecimento. Desde que nossos ancestrais recepcionaram forasteiros e ofereceram-lhes hospitalidade para, em seguida, descobrir que eles não vieram de forma amigável, nosso povo resistiu firmemente àconquista, àescravidão, àcolonização, ao apartheid, ao fascismo e ao imperialismo. Assim como resistiram a quaisquer formas de despotismo que existiam antes do advento dos saques europeus, seguem fazendo incessantemente desde então. A descolonização beneficiará toda a humanidade, e é por isso que eu chamei este texto de "humanifesto".

Reconheço os povos originários como donos de suas terras. Não sei o que o povo maori passou ou como sobreviveu, mas gostaria de compartilhar que, quando criança, eu sobrevivi ao genocÃÂdio neocolonial em Biafra, entre 1967 e 1970, na Nigéria. Essa guerra não foi um conflito tribal, mas uma conquista neocolonial orquestrada pelo suprimento imperialista britânico de armas de destruição em massa, a ponto de serem despendidos, em 30 meses, mais disparos de armamento leve do que durante toda a Segunda Guerra Mundial. Em uma estranha aliança, o governo do Partido Trabalhista britânico juntou-se a seu inimigo da Guerra Fria, a União Soviética, que forneceu aviões de bombardeio para atingir mulheres do comércio informal, crianças em escolas, hospitais e aviões humanitários que transportavam comida e remédios, no intuito de reforçar o bloqueio das tropas nigerianas contra a população do leste do paÃÂs, e, especialmente, contra o povo igbo. Depois de sofrer com a perda de 100 mil vidas nas primeiras etapas do genocÃÂdio em outras em partes da Nigéria, a população do leste concluiu que não era desejada naquele Estado, declarando sua separação para exercer o direito àautodeterminação enquanto nação que já havia defendido a luta pela descolonização contra o domÃÂnio britânico. O resultado foi o assassinato de 3,1 milhões de pessoas em apenas 30 meses, no curso de um ataque genocida que vitimou majoritariamente os igbos. Aos que não estão familiarizados com esse genocidio fundante da era pós-colonial africana, é recomendável consultar Achebe (2012), Ekwe-Ekwe (2006) e Jacobs (1987).

Em uma resenha sobre o filme blockbuster Pantera Negra em meu site (AGOZINO, 2018a), eu fiz objeção àmensagem da polÃÂtica de sucessão em Wakanda como uma luta até a morte entre os candidatos. Clamei pela abolição das instituições coloniais da monarquia na África e recomendei a adoção de eleições democráticas. Como esperado, alguns africanos em diáspora, que adoram viver em democracias liberais, discordaram de mim e disseram que monarquias podem ser uma força para o bem da África, e que a batalha real não foi necessariamente genocida. Em minha crÃÂtica ao filme, também fui desafiado por invocar o imaginário do Neo-Tarzanismo de Wole Soyinka. Há quem acredite que Soyinka era um monarquista que escreveu uma peça chamada Morte e os Cavaleiros do Rei (3) para simbolizar que era esperado na cultura Iorubá que, quando seu rei morresse, o cavaleiro deveria praticar um ritual de suicÃÂdio e ser enterrado junto com o rei. Contudo, discordei dessa interpretação, apontando que ele escreveu a peça anos depois de deixar o confinamento solitário advindo da sua oposição ao genocÃÂdio igbo. Sugeri que a peça era anti-monarquista e anti-ritual de suicÃÂdio, assim como questionei por que os iorubás instruÃÂdos eram os maiores entusiastas de um ritual suicida em honra àmorte de um rei. De forma semelhante, os iorubás mais instruÃÂdos foram também os filósofos genocidas que disseram àimprensa que a morte por inanição era uma arma legÃÂtima na guerra genocida em Biafra. Esse debate estava ocorrendo na internet quando eu visitei a Nova Zelândia para inaugurar a nova revista acadêmica Decolonization of Criminology and Justice.

Eu cresci ouvindo histórias sobre como colonizadores prenderam meu pai por vender pólvora para caçadores e atiradores de funerais solenes sem renovar sua licença. Ele se libertou da prisão quando urinou no chão, perto da porta da cela, após ser proibido de sair para aliviar suas necessidades fisiológicas. Meu pai também nos contou histórias sobre como o padre católico local tentou intimidá-lo para abandonar sua fé tradicional e sua função de sacerdote nativo. Ele foi ordenado a se converter para o catolicismo sob pena de ser despejado de nossa casa, considerada muito próxima da igreja. Mas a resposta de papai a essa ameaça foi pegar seu facão afiado e agir como se estivesse prestes a cortar a cabeça do padre, que fugiu com medo. Mais tarde, o padre enviou emissários para implorar a meu pai para que ele confessasse que tinha sido coagido por alguns de nossos vizinhos, com a intenção de assustar papai o suficiente a ponto de se converter e se tornar também um frequentador da igreja.

Minha mãe também foi detida pela polÃÂcia colonialista por se valer de sua poesia para reunir os moradores visando agredir um homem suspeito de pescar em um riacho sagrado, onde essa prática era proibida. Ela se libertou após argumentar que todos tinham o dever de proteger o meio ambiente. Minhas avós foram da geração que travou a Guerra das Mulheres, conhecida como Ogu Umunwanyi, contra as autoridades militares (4) que os colonizadores impuseram àcomunidade democrática igbo, que desconhecia reinados e acreditava na igualdade entre todos. Na ocasião, antropólogos britânicos escreveram "relatórios de inteligência" que diziam que os igbos eram um povo primitivo ou uma sociedade acéfala que precisava ser civilizada através da imposição de lÃÂderes. Proponho essas reflexões para enfatizar que o colonialismo e as lutas pela descolonização não são eventos históricos distantes, mitologia ou simples metáforas; ao contrário, fazem parte das minhas próprias experiências de formação.

Depois da guerra genocida àqual sobrevivi quando criança em Biafra, um antropólogo colonialista alertou a ditadura militar que dominava a Nigéria que o povo igbo era difÃÂcil de governar, já que não tinham chefes. Consequentemente, a imposição de lideranças seria uma maneira de torná-los submissos (PERHAM, 1970). Anos mais tarde, o general Olusegun Obasanjo assinou o Decreto de Reforma Governamental Local de 1976 (ONYEDIKACHI, 2016), que determinava que cada cidade, incluindo aquelas igbo que lutavam para definir quem seria coroado como Igwe ou Sky Chief, deveria ter um governante tradicional (5). No entanto, jovens igbos têm apoiado uma campanha em defesa dos direitos dos povos originários de Biafra por meio de um plebiscito sobre a sua autodeterminação.

O Estado neocolonial e genocida da Nigéria continua a responder com execuções extrajudiciais, tortura, prisão, desaparecimentos forçados e exÃÂlio antiterrorista contra pessoas desarmadas que, de forma pacÃÂfica, exercem sua liberdade de expressão, seja hasteando a bandeira de Biafra, fazendo orações ou até permanecendo em casa para lamentar os espÃÂritos dos seus entes queridos assassinados nesse genocÃÂdio (AMNESTY INTERNATIONAL, 2016). Enquanto isso, criadores de gado armados que cometem extermÃÂnio em massa por todo o paÃÂs não foram considerados como gangues terroristas, ao passo que os detidos do Boko Haram foram libertados pelo governo em troca de mulheres sequestradas pelo grupo terrorista. Escritores nigerianos têm se mantido amplamente em silêncio sobre esse genocÃÂdio, exceto quando tentam negar o seu acontecimento, mesmo diante da publicação de relatos de testemunhas...

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