A moralidade jurídica dos Direitos Humanos: apontamentos sobre a contribuição teórica de Otfried Höffe

AutorDoglas Cesar Lucas
CargoMestre em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutorando em direito pela UNISINOS. Professor da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) e do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (IESA).
Páginas139-154

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Considerações iniciais

Tendo presente a importância dos Direitos Humanos para a definição de uma cultura cosmopolita voltada para a paz, o presente texto tem a pretensão de apresentar, sem muitos detalhes, alguns apontamentos da teoria transcendental de Otfried Höffe sobre os direitos humanos. O trabalho centrará sua atenção no argumento defendido pelo autor de que os direitos humanos e a democracia constituem em um dos níveis do que Höffe denominou de moral jurídica, capaz de gerar reciprocidades obrigacionais internacionais e servir de referência para se avaliar o desenvolvimento das nações. Por fim, destaca-se que os direitos humanos são patrimônio comum da humanidade e que a sua universalidade mediadora (mas não planificadora) é indispensável para a promoção de um diálogo intercultural e para a elaboração de propostas cosmopolitas de emancipação social.

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1 Os Direitos Humanos na proposta transcendental de Otfried Höffe

Na obra de Otfried Höffe, pode-se perceber uma aproximação entre o direito e a moral operada de modo racional, sem as agonias e os ceticismos epistemológicos específicos do debate jurídico que transformou a questão moral numa zona totalmente estranha ao direito. No lugar deste cientificismo exagerado que se operou na divisão clássica dos saberes jurídico e moral, Höffe sugere uma relação de correspondência recíproca, apresentada por ele como necessária e indispensável para se fundamentar uma cultura universal sobre os direitos humanos. Sem confundir o direito com a moral, uma vez que parte de uma separação entre ambas as categorias, o autor, visivelmente influenciado por Kant, aponta para o direito e a moral como elementos constituidores daquilo que ele denominou moral jurídica. Lembra o autor, inicialmente, que a filosofia moral e jurídica sempre se contentou em apenas separar a moral em sentido positivo, que retrata a idéia de ética, dos usos e costumes, da moral em sentido crítico, que versa sobre as obrigações supremas não negociáveis, separando ambas do direito. Por sua vez, a idéia de uma moral do direito, continua Höffe, deve ser entendida como uma variação que se desenvolve dentro da moral crítica, de modo que a moral jurídica corresponde àquela parte da moral crítica, “cujo reconhecimento se devem as pessoas reciprocamente.”2

O substantivo moral na categoria “moral jurídica” não representa uma característica direcionada ao direito positivo e suas formas tradicionais de sanção. Não se deve esperar da moral jurídica um tipo de punição dura por parte do direito, mas apenas uma sanção branda, uma reação de protesto e indignação contra um conjunto de situações que precisam ser modificadas e que, por isso, autorizam esta exigência de mudança. Por outro lado, lembra Höffe, o designativo “jurídica” da expressão “moral jurídica” deve ser compreendido tanto no sentido objetivo como no sentido subjetivo. Isso significa que a moral jurídica é uma moral que pode ser exigida legalmente, que potencializa não apenas uma expectativa, um desejo, mas sobretudo um direito subjetivo de se exigi-la. Justamente por isso a moral jurídica não se reduz às modalidades brandas de punição, às modalidades de sanção exclusivamente moral, pois no momento em que a moral jurídica se integra ao direito positivo passa a aceitar, também, as sanções tipicamente jurídicas.3 Assim, a “moral jurídica submete todo o ordenamento jurídico positivo a uma pretensão moral, aPage 141qual, na medida em que é admitida, o caracteriza como legitimo ou justo e, no caso de ser rechaçada ou inclusive, “pisoteada”, de injusto”.4

Essa exigência da moral jurídica, porém, apresenta-se, de acordo com Höffe, em três níveis. O primeiro destaca que a relação entre os indivíduos e, de modo geral, a vida em sociedade, deve ser conformada pelo direito, isto é, que o direito, a partir de normas comuns, deve imperar sobre a vontade e as opiniões particulares. Trata-se, nesse nível, de reconhecer a moral como instituidora e legitimadora da forma jurídica de convivência. Em um segundo nível, a moral jurídica determina que a forma jurídica deve ser respeitada de modo inarredável e que todas as pessoas devem ser tratadas de acordo com as normas, ou seja, serem tratadas com igualdade. Essa exigência da moral jurídica sustenta-se na obrigatoriedade de todos serem tratados com igualdade pela legislação. Esses dois primeiros níveis, lembra Höffe, são aceitos sem discussão em praticamente todas as culturas contemporâneas e formam aquilo que o autor chama de “herança comum de justiça da humanidade.”5

Ao contrário dos dois primeiros, o terceiro nível da moral jurídica, constituído pela democracia e pelos direitos humanos, ainda não encontrou solo fértil em todas as nações contemporâneas. Enquanto os dois primeiros níveis garantem um mínimo de moral jurídica, o terceiro apresenta uma riqueza substancial, uma ampliação das pretensões a serem protegidas pelo poder coativo. Esse terceiro nível refere-se diretamente ao conteúdo da moralidade, pois diz respeito a um conjunto de escolhas e de pautas sociais que deverão ser garantidas e introduzidas nas formalidades e procedimentos que são objeto dos dois primeiros níveis da moral jurídica. É preciso observar, prossegue Höffe, que o incremento total dos elementos desse terceiro nível não necessariamente ocorre de modo simultâneo em todos os planetas, pois estão diretamente relacionados com as políticas públicas de cada nação. Nesse sentido, o autor apresenta três níveis parciais do terceiro nível da moral jurídica: “os direitos humanos como direitos de liberdade, a democracia com os direitos de cogestão por ela definidos, e uma porcentagem de direitos humanos de caráter político e social.”6 Do mesmo modo como os níveis da moral jurídica (forma jurídica de convivência; antecedência da igualdade perante a lei; direitos humanos e democracia) estão diferentemente realizados nos diversos países, assim também os três níveis parciais do terceiro nível da moral jurídica são atendidosPage 142em diferentes medidas, uma vez que dependem, como se disse, da atuação estatal e do grau de satisfação de cada comunidade.

A partir da efetiva proteção dos diferentes níveis da moral jurídica é possível, segundo o autor, perceber o grau de moralidade legitimadora de uma determinada ordem social. Assim, continua Höffe, apenas aquele Estado que reconhece a forma jurídica de convivência, que sustenta a igualdade perante a lei e que defende os direitos de liberdade, a democracia e o Estado social, que é necessário para a afirmação dos direitos humanos, poderá ser considerado como uma organização plenamente legítima do ponto vista moral. É de se notar ainda que a moral jurídica, como quer Höffe, não é prisioneira de relativismos culturais e de orientações tradicionais. Trata-se de uma moral que deposita sua capacidade crítica unicamente na razão universal e nas experiências de toda a humanidade: “Uma filosofia moral que se atenha somente a esses dois fatores, à combinação da razão universal com a experiência igualmente universal, sustentada por la conditio humana, pode reclamar com toda a razão a categoria de universal”.7

Essa pretensão de universalidade poderia suscitar algumas indagações, mormente em razão do quadro de redefinições por que passa a sociedade contemporânea. Poder-se-ia questionar, por exemplo, se é possível pensar em uma moralidade jurídica comum para todas as culturas, uma moralidade jurídica universal que não signifique, ao mesmo tempo, a denegação de um conjunto de diferenças indispensáveis à confecção das identidades locais. Será que é possível falar de uma moral jurídica universal no contexto da globalização?

Apesar de a globalização sustentar uma radical evidenciação do processo de diferenciação entre as culturas, caracterizado, apesar de não unicamente, pela defesa peculiar das ordens culturais, econômicas e políticas internas de cada nação, ela também necessita estabelecer uma moral jurídica de abrangência igualmente global, importante que é para garantir minimamente os espaços de troca, de diálogo, de interação política, de incremento comercial entre os Estados e, especialmente, para servir como um contraponto capaz de denunciar e combater os efeitos negativos da globalização. Segundo Höffe, a moral jurídica tem importância fundamental nas dimensões em que a globalização desenvolve a sua atuação. Em primeiro lugar, refere o autor, existe uma tendência global de que uma determinada forma dePage 143civilização se estenda rapidamente para todas as regiões do mundo. Esta tendência, entretanto, não se desenvolverá naqueles cenários em que se cultiva uma cultura única, uma religião única, uma ideologia política única, enfim, onde se vive um modelo de comunidade fechada em torno de dogmas sociais que dominam, de forma exclusiva, as dimensões da vida social em seus diferentes níveis (econômico, cultural, político, etc.).

Inobstante a globalização apontar para a identificação de um conjunto de elementos comuns, presentes em diferentes lugares, isso não significa a configuração de uma nova e plena civilização específica e homogênea. Pelo contrário, o que se percebe é que perdura e se radicaliza uma diversa gama de costumes, religiões e línguas, ao lado das diferenças que existem no direito positivo e na cultura política de cada país. Mas, apesar dessas diferenças, prossegue Höffe, é...

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