A Idade Contemporânea

AutorOthon de Azevedo Lopes
Páginas159-240
Capítulo 5
A Idade Contemporânea
O iluminismo no século XVIII já havia adiantado uma mudança de cos-
movisão que redundaria no pensamento predominante no século XIX. A ra-
zão dos modernos que era extremamente abstrata foi recebida pelos ilumi-
nistas muito mais voltada para a experiência concreta e para uma valorização
de certezas ligadas às ciências naturais e aos fatos. No século XIX, o mito da
razão é substituído pelo mito da ciência393. Em outras palavras, o conheci-
mento deslocava-se para a observação dos fatos, regidos por leis determinis-
tas e necessárias, que permitiriam um grande progresso material com a apro-
priação tecnológica dos conhecimentos das ciências naturais, como a física,
a química, a biologia.
Criou-se uma oposição entre ciências e letras. Desprezava-se todo o co-
nhecimento vago, ligado à moral, à estética, à metafísica, ou qualquer ideia
ou princípios a priori. O conhecimento abrangia apenas verdades positivas,
estritamente científicas, e sobre elas se baseava todo o conhecimento. Du-
rante o século XIX, os métodos e o pensamento das ciências exatas ganha-
ram novos objetos: a sociedade e o homem, em uma visão causal e determi-
nista. Foi aí o marco do surgimento das ciências sociais.
A tarefa de tais ciências era substituir todo o conhecimento anterior
contaminado por mitos e metafísica. Na primeira metade do século XIX, o
programa de conhecimento dessas ciências era totalitário, procurando subs-
tituir todos os dogmas anteriores, por uma concepção em conjunto do mun-
do e do homem394. Hegel, Marx e Comte foram pensadores paradigmáticos
desse período.
No direito, surge o positivismo jurídico, procurando formular um siste-
ma de conhecimento apenas sobre fatos observáveis, sejam os fatos sociais,
econômicos, históricos ou mesmo a lei posta pelo Estado. O jusnaturalismo
contribuíra com a ideia de que o direito adviria da razão e da autoridade395,
159
393 VILLEY, Michel. Leçons d’histoire de la Philosophie du Droit. Paris: Dalloz, 2002, p. 69.
394 COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva; Discurso Sobre o Espírito Positivo; Dis-
curso Preliminar Sobre o Conjunto do Positivismo; Catecismo Positivista. Seleção de textos de
José Arthur Giannotti; trad. José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultu-
ral, 1978.
395 ARANHA, Márcio Iorio. Interpretação Constitucional e as Garantias Institucionais dos
Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 1999, p. 30.
porém como forma de proteção e manutenção de indivíduos em sociedade.
Nas diferentes escolas do positivismo jurídico, o direito continuaria ligado à
razão e à autoridade, mas não com o mesmo sentido abstrato e individualista
do direito natural. A razão e a autoridade afirmam-se como fatos. A expe-
riência concreta e a lei positiva tomam forma de dogmas científicos, passan-
do a constituir sistemas fechados.
No contexto da própria sociedade, o século XIX foi marcado pela ex-
pansão da revolução industrial, que se iniciara na Inglaterra no século XVIII,
por grande parte da Europa Ocidental. As mudanças sociais foram significa-
tivas, estendendo-se muito além dos aspectos tecnológicos e econômicos,
afetando a sociedade como um todo. Como acentua Parsons, “a chave para
a revolução industrial é a extensão do sistema de mercado e a consequente
diferenciação no setor econômico da estrutura social”396. O século XIX foi
marcado pela acumulação de capitais em mãos privadas fora do Estado com
a emergência de um subsistema social voltado para o dinheiro.
A visão totalitarista de sociedade que se consolidara com o positivismo
exigiu a criação de um superator social que pudesse absorvê-la e representá-
la como um todo. Os cidadãos que haviam promovido a revolução francesa
foram, sob essa ótica, reduzidos ao seu coletivo para formar o povo, que alia-
dos à soberania e ao território formariam o Estado Nacional. Esse Estado
Nacional iria constituir-se a partir das metáforas mecanicistas e tecnicistas
geradas pela própria Revolução Industrial como uma máquina burocrática.
A Alemanha Imperial foi o grande exemplo desse novo Estado autoritário e
totalitário397.
O século XIX foi, assim, a era da ciência e da técnica que pretendia do-
minar e abarcar a própria sociedade. Então, reforçados pela visão determi-
nista, orgânica e mecanicista do positivismo, surgiram dois novos compo-
nentes, dois novos sistemas na sociedade: a economia, voltada para o dinhei-
ro, e o Estado, voltado para o poder político-burocrático. Este último mon-
tado claramente para absorver e integrar toda a sociedade.
1 - O pensamento penal do século XIX
No direito penal, o século XIX foi marcado pelo conflito das escolas
clássica e positiva. Os clássicos eram racionalistas, com fortes raízes jusnatu-
ralistas. Eram contratualistas e universalistas. Estavam, assim, preocupados
em romper com o absolutismo e em construir um sistema garantista de di-
reitos individuais.
160
396 PARSONS, Talcott. O Sistema das Sociedades Modernas. Trad. Dante de Moreira Leite.
São Paulo: Pioneira, 1974, p. 95.
397 Idem. Ibidem. p. 106.
A escola clássica foi um desenvolvimento do pensamento de Beccaria e
de outros pensadores ligados ao direito natural moderno. A sua principal
preocupação era o estudo do crime e da pena, a partir da sistematização das
regras repressivas. Dentre os seus pensadores, pode-se destacar Feuerbach,
Filangieri, Romagnosi, Carmignani, Pessina e Carrara398.
A escola clássica buscava alterar profundamente o direito penal do anti-
go regime. Por isso, todo o seu pensamento foi construído a partir da natu-
reza racional do homem e do contrato social. Isso explica a pouca referência
à legislação vigente por parte de tal movimento.
Houve também forte influência de Kant sobre a escola clássica399. O cri-
me foi enfocado como uma categoria de lógica abstrata, como um ente
apriorístico da razão. Surgiu assim uma análise lógico-formal dos conceitos e
elementos que integravam o crime. A ação humana tornou-se o centro de
seus estudos, como uma forma de garantir, por conceitos e características
claramente determinadas, a liberdade do homem contra os abusos do Es-
tado.
O crime foi entendido, dentro de tal perspectiva, como uma violação
consciente e voluntária da norma penal400. Livre-arbítrio e vontade culpável
foram elementos fundamentais para o entendimento do crime em tal escola.
A imputabilidade, como capacidade para expressar livremente a vontade,
era também um tema caro a tal escola.
A pena, para os clássicos, era essencialmente retributiva, constituindo
uma reação do ordenamento jurídico à sua violação pelo crime. A pena po-
deria ser aplicada apenas aos que tivessem capacidade de querer e entender,
como uma medida pessoal, aflitiva e repressiva.
De outro lado, não se pode esquecer que o século XIX foi o século do
surgimento das ciências sociais, desvinculadas de toda a metafísica, cons-
truídas a partir da experiência concreta. Era o pensamento positivo que se
afirmava com base em fatos e na superestimação do pensamento causal e da
experiência.
Em contraposição clara aos conceitos extremamente abstratos dos clás-
sicos, surge a escola positiva, procurando investigar as causas e as formas
concretas da delinquência. Os integrantes da escola positiva rejeitaram a
ideia de livre-arbítrio, considerando o crime como um fato determinado por
condições sociais e pessoais, em uma visão naturalística.
161
398 LYRA, Roberto. Introdução ao Estudo do Direito Criminal. Rio de Janeiro: Nacional de
Direito, 1946, p. 97.
399 BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Campinas: Red Livros, 2000, p. 30.
400 Idem. Ibidem.

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