A Idade Moderna

AutorOthon de Azevedo Lopes
Páginas115-158
Capítulo 4
A Idade Moderna
1 - A transição espiritual para a Idade Moderna
No século XVI, o pensamento ainda estava voltado para a fé264, mas o
legalismo e a burocracia da Igreja Católica Romana foram vigorosamente
contestados pelo surgimento das doutrinas protestantes. Lutero denunciou
o corporativismo da Igreja e sua organização legal. Foram queimados livros
católicos, com o objetivo de simbolizar que a Igreja não poderia ter nenhum
caráter jurídico, por ser uma invisível comunhão de fiéis265.
No entanto, o próprio Lutero acreditava no valor do direito, mas de um
direito secular editado por um príncipe cristão. A crença católica na infusão
de um direito divino e natural em instituições legais foi levada à frente pelo
luteranismo, mas apenas para instituições seculares. Dentro da concepção
protestante, a Igreja seria uma comunidade puramente espiritual conviven-
do em um mesmo espaço com uma ordem secular particular. Deus para o
protestantismo ainda era um Deus Justo, mas os seus desígnios não eram di-
retamente acessíveis aos homens, de modo que não cabia à Igreja determi-
nar qual seria o direito correto. O direito para o protestantismo era obra ex-
clusiva dos homens.
Houve, com isso, uma cosmovisão propícia para que o direito eclesiásti-
co e o secular da Europa Medieval sobrevivessem em grande medida dentro
do direito do Estado moderno266, mas tornando-se progressivamente secula-
rizado. Então, com o paulatino estabelecimento das funções de legislação e
a aplicação da lei nos Estados, formaram-se as bases para a separação entre
direito e teologia. Isso não ocorreu repentinamente, pois o Cristianismo se-
guiu como a principal religião. Esse foi um projeto iniciado com a reforma
protestante e que se estendeu por toda a Idade Moderna e grande parte da
Idade Contemporânea.
115
264 VILLEY, Michel. La Formation de la Pensée Juridique Moderne. Paris: Les Éditions
Montchrestien, 1968 p. 277.
265 BERMAN (Op. cit. p. 209).
266 Idem. Ibidem p. 210.
Efetivamente, somente no século XX consolidou-se a separação das
instituições jurídicas do Ocidente de suas fontes espirituais. Foi somente
em tal século que os Estados Nacionais já sedimentados criaram um ambien-
te para a total separação do poder político do religioso, possibilitando que o
direito e a lei estivessem vinculados apenas a instituições laicas. O pensa-
mento da lei como um produto apenas da razão, sendo capaz de funcionar
como instrumento do poder secular, desconectadas de valores e propósitos
últimos267, tornou-se uma realidade, o que só foi possível pela emergência
do protestantismo como impulso para a laicização do direito.
2 - A formação do Estado moderno
A revolução papal permitiu o surgimento do moderno Estado ocidental.
O seu modelo foi a própria Igreja. A Igreja após Gregório VII afirmara-se
como uma autoridade independente, hierarquizada e pública. O papa pas-
sou a ter o poder de legislar. Os sucessores de Gregório promulgaram uma
corrente contínua de leis. Tais regras eram obedecidas e impostas por meio
da estrutura hierarquizada da Igreja Católica. Também a interpretação de
leis e a sua aplicação ocorriam por meio de autoridades que resolviam con-
flitos internos e de interesses entre fiéis que a Igreja julgava importantes
para a religião. A Igreja exercia assim várias das funções que os Estados mo-
dernos adquiriram posteriormente: legislativa, administrativa e judicial.
Também, atuava por meio de um sistema jurídico racional – o direito ca-
nônico. Fixava impostos por meio do dízimo e outros gravames. Iniciou um
serviço de registros por meio do batismo, casamento e óbito. A tendência
universalizante do batismo inaugurou uma espécie de cidadania268. Enfim, a
Igreja formou uma estrutura especializada para reservar-se a exclusividade
em questões espirituais. A Igreja se afirmou como uma comunidade espiri-
tual, com funções temporais, com uma constituição que acabou por inspirar
os Estados modernos.
Embora a estrutura da Igreja tenha sido criada para retirar o poder de
reis e imperadores da Alta Idade Média, tais como o Franco e o Germânico,
ela tinha atuação decisiva em assuntos temporais e seculares. Influência que,
em vários países, durou até o século XX. Assim, a partir do século XI não se
podia falar de uma separação entre Igreja e Estado. Até mesmo porque, fora
alguns poucos países como Sicília e Inglaterra normanda, que começavam a
criar instituições políticas e jurídicas modernas, nada disso havia em outras
116
267 Idem. Ibidem p. 210.
268 Idem. Ibidem p. 324.
regiões da Europa. Existiam, em verdade, vários outros tipos de poderes se-
culares dispersos, como cidades e senhores feudais. Os poucos Estados ter-
ritoriais nacionais estavam submetidos a um poder geral da Igreja.
De outro lado, havia uma forte influência dos reis e governantes secula-
res, sem poder espiritual direto, na nomeação de bispos, abades e outros clé-
rigos. No caminho inverso, as autoridades eclesiásticas ocupavam funções
públicas importantíssimas, servindo como conselheiros e funcionários de go-
vernantes seculares. Exemplificativamente, até o século XVI, o chanceler
da Inglaterra, a segunda autoridade após o rei, as mais das vezes era um alto
dignatário da Igreja – o arcebispo de Canterbury ou de York.
Durante toda a Idade Média e boa parte da Idade Moderna, a Igreja
mantivera ainda poderes seculares. Os bispos eram senhores de seus vassalos
e servos feudais. Acima de tudo, o papado afirmou sua autoridade para de-
cidir sobre a política secular e conflitos entre todos os países cristãos. De
fato, havia supremacia do poder espiritual sobre o temporal.
No início da Idade Moderna, era impossível distinguir a “história do pe-
cado” da “história do delito”. Mesmo nos territórios alemães em que predo-
minavam as Igrejas reformadas, não era possível a distinção clara entre o
foro secular e o eclesiástico. No entanto, as novas confissões religiosas pas-
saram a ter um modelo religioso, com a distinção entre disciplina eclesiásti-
ca, em que se objetiva a conversão do pecador num regime pastoral, e, de
outro lado, o direito penal estatal, em que o aspecto punitivo predomi-
nava269.
Agudizando esse movimento de apartamento da disciplina religiosa do
poder secular, durante a Idade Moderna, os Estados, num ambiente social
favorável, afirmaram sua independência em relação ao poder político da
Igreja e acabaram por internalizar o legado institucional e jurídico da Igreja
– a instituição de maior solidez e complexidade até então. Os Estados mo-
dernos afirmaram-se, sob a inspiração da Igreja, como uma comunidade se-
cular, em uma estrutura constitucional derivada em boa medida da adminis-
tração eclesiástica e do direito canônico.
O Poder num movimento centrípeto desenvolveu-se como fenômeno
de organização e regulação, em que se destaca a capacidade normativa.270
Nesse movimento, adensam-se o princípio da ordem pública, da autoridade
e da constitucionalidade de um poder que inicialmente se concentrasse num
Soberano.
117
269 PRODI, Paolo. Uma história da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 288.
270 GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São
Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 57.

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