A Idade Média

AutorOthon de Azevedo Lopes
Páginas65-114
Capítulo 3
A Idade Média
1 - Alta Idade Média
1.1 - A transição para a Idade Média: Novo Testamento
Como já se pôde entrever na evolução do direito romano, o surgimento
do Cristianismo foi um dos grandes marcos da Civilização ocidental. O di-
reito e mesmo a responsabilidade tornaram-se objetos de uma lenta refor-
mulação para se adaptar ao pensamento cristão expresso na Bíblia, seja na
Primeira ou na Segunda Aliança.
A concepção cristã de pecado tornar-se-ia, na Idade Média, um dos ei-
xos centrais a partir do qual se construiria a responsabilidade. Nesse sentido,
o pecado original foi a desobediência ao mandamento original de não comer
do fruto da árvore do bem e do mal. Mostrara-se como um rompimento do
pacto com Deus pela soberba do homem que não queria tolerar limitação
nenhuma, não querendo os vínculos do bem e do mal. A transgressão ao
mandamento divino foi punido com a expulsão do paraíso. O homem ingres-
sou assim no mundo do mal, da dor e da morte.
Somente pelos seus próprios esforços, o homem não se poderia salvar do
pecado original e de suas consequências. Assim como a criação foi uma be-
nevolência de Deus, o resgate seria o maior dos dons. Deus assumiu a forma
humana e, com sua paixão e morte, resgatou a humanidade do pecado. Com
a sua ressurreição, derrotara a morte, consequência do pecado original. O
pecado original acabaria por se mostrar emblemático para a responsabilida-
de a partir da Idade Média, já que foi a partir de tal ideia que se formou gran-
de parte do pensamento acerca da responsabilidade do homem por seus atos
perante Deus.
De outro lado, a fé mostrou-se como outra dimensão da relação do ho-
mem com o mundo e com Deus. O saber que para os gregos estava ligado à
razão e ao conhecimento, após o Cristianismo, ligou-se também à revelação.
O homem que, para os gregos era corpo e alma, esta última entendida como
razão e intelecto, tornou-se corpo, alma e espírito. Este último seria exata-
mente a abertura do homem para a Sabedoria divina por meio da fé. A res-
ponsabilidade não estaria mais adstrita à razão, como fora para os gregos por
meio de sua concepção de controle dos instintos. Moldar suas ações confor-
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me os mandamentos de Deus não seria mais apenas um ato de razão, trans-
formar-se-ia em um ato de fé e de vontade.
Outra ideia importante do Cristianismo foi a de amor. O amor cristão
está ligado à benevolência de Deus. O amor bíblico não é a subida do ho-
mem aos céus, mas a descida de Cristo ao mundo. Tem como característica
a espontaneidade e a gratuidade, não encontrando limites por ser infinito. O
amor cristão revela uma desconcertante desproporção, na sua absoluta doa-
ção. No evangelho de São Marcos, há uma síntese de tal ideia: “o Senhor
nosso Deus é o único Senhor e amarás o Senhor teu Deus de todo teu cora-
ção, de toda a tua alma, de todo teu entendimento e com toda a tua força157,
assim como amarás o teu próximo como a ti mesmo”158.
Foi dentro de tal contexto de amor que o Antigo Testamento, a Primeira
Aliança, foi renovado por Cristo. Surgiu, então, o Novo Testamento e a
Nova Aliança. No profeta Jeremias, já se encontra a promessa de um outro
pacto, já que o povo de Deus haveria rompido o primeiro com o pecado ori-
ginal. Mais uma vez, por benevolência divina, haveria perdão das culpas e pe-
cados: “Conhecei a Iahweh.! Porque todos me conhecerão, dos menores aos
maiores – oráculo de Iahweh-, porque vou perdoar sua culpa e não me lem-
brarei mais do seu pecado”159.
Ao mesmo tempo em que a responsabilidade deixou o campo da expia-
ção, da retribuição pelo talião e assumiu a dimensão do pecado, a pena dei-
xou de ser um ato necessário para o reequilíbrio da ordem quebrada. A pena,
no pensamento cristão, surgiu com um ato de perdão, como meio para re-
conciliação com Deus e como manifestação de sua infinita misericórdia.
Cristo surgiu, assim, para reafirmar um novo acordo com a humanidade
a partir de seu próprio sangue para redimir todas as transgressões cometidas
pelo homem no regime da Primeira Aliança. A difusão da Bíblia por todo o
Ocidente com o Antigo e o Novo Testamento foi certamente o evento de
maior importância na construção do pensamento sobre a responsabilidade.
A responsabilidade impregnar-se-ia, a partir de então, da metafísica cristã,
assumindo a dimensão do pecado, da fé, do perdão e, principalmente, de um
dever transcendente perante Deus, que era um dos pontos marcantes da
Antiga Aliança.
1.2 - O pensamento de Santo Agostinho
Santo Agostinho foi um dos principais pensadores da Alta Idade Média,
tendo sido fortemente influenciado pelo pensamento grego, especialmente
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157 São Marcos, 12, 30.
158 São Marcos, 12,31.
159 Jeremias, 31, 34.
o neoplatonismo, o pensamento romano e um Cristianismo estrito. A razão
na fé foi um de seus pilares. A fé não substitui a inteligência. Em verdade,
ela potencializava a inteligência. As verdades últimas, contudo, só se obti-
nham por revelação divina.
Havia, para Santo Agostinho, uma cisão em Cidade Celeste e Cidade
Terrena. A verdadeira justiça e felicidade estariam apenas na primeira. No
mundo terreno, a infelicidade explicar-se-ia por ser a justiça mundana ape-
nas uma ínfima parte daquela de Deus.
Em Santo Agostinho, surgiu na filosofia ocidental a pessoa e o indivíduo
não mais como categoria abstrata, como no pensamento grego, e sim como
um eu como um ser único e particular. Ele falava em homem interior que é
a imagem de Deus e da Trindade”160. Um homem que é, conhece-se e ama-
se, como espelho de Deus161.
O mal não existia positivamente no pensamento de Agostinho, sendo
apenas a ausência do bem. Quando o homem decidia pelo mal no lugar do
bem, estava simplesmente deixando de colaborar com Deus no incremento
do bem. A liberdade humana não se suprimia, porque existiria sempre uma
cooperação com Deus por parte do homem. A vontade humana poderia ser
iluminada pela fé para se aproximar da vontade de Deus.
A razão conhecia e a vontade escolhia. Para fazer o bem, o homem deve-
ria ser dotado de livre arbítrio e de graça. A graça não suprime o livre-arbí-
trio, e sim tornaria a vontade boa. A liberdade seria esse poder de fazer o
bem que pressupunha inspiração divina. Não poder mais fazer o mal signifi-
caria o grau supremo de liberdade que Cristo assumiu162.
Direito e moral estavam intimamente ligados para Santo Agostinho. Foi
em nome da moral que ele aprovou a condenação jurídica da dissimula-
ção163. O seu pensamento se prendia muito mais à responsabilidade moral
do que à responsabilidade penal. O delito foi definido, por Santo Agostinho,
essencialmente pelo foro interno, já que eraum pecado grave, que merece
que o acusemos e o condenemos”164. Ele insistia, sobretudo, na consciência
sobre o delito. A seu ver, a ignorância da lei não escusaria absolutamente o
pecado, mas minimizaria a responsabilidade de seu autor. A consciência dos
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160 In REALE & ANTISERI (op. cit., v. I, p. 440).
161 O seguinte trecho das Confissões bem exemplifica essa característica do pensamento de
SANTO AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Pau-
lo: Nova Cultural, 2000, p. 38: Por conseguinte, não existiria, meu Deus, de modo nenhum
existiria, se não estivésseis em mim. Ou antes, existiria eu se não estivesse em Vós...
162 REALE & ANTISERI (op. cit. p. 458).
163 HOULOU, Alain. Le droit penal chez Saint Augustin. In: Revue Historique de Droit
Français et Etranger. Vol. 52, jan./mar., 1974, p. 8.
164 Idem. Ibidem.

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