A responsabilidade na Antiguidade

AutorOthon de Azevedo Lopes
Páginas17-63
Capítulo 2
A responsabilidade na Antiguidade
Assim como o próprio direito, a responsabilidade como instituto jurídi-
co fundamental remonta à Antiguidade. Já nos primórdios da formação da
civilização, a responsabilidade afirmou-se como momento significante da
experiência jurídica. Não é exagero dizer que a evolução da responsabilidade
é parte fundamental da história do direito.
Primitivamente, a reparação de danos não era regulada pelo Estado ou
outra organização política. Não havia ilícito civil nem penal. A vingança pri-
vada era a forma de solução dos possíveis danos e conflitos, de modo que a
resposta de um mal era outro mal.
Com a evolução das relações sociais, a vítima, em lugar de se vingar na
pessoa de seu adversário, passou a procurar ressarcimento com o patrimônio
do lesante. Tal indenização, inicialmente, assumia o caráter de composição
de interesses entre o prejudicado, que teria o seu dano amenizado, e a outra
parte, que não mais correria o risco de represálias. Depois, o Estado tornou
obrigatório esse tipo de composição, não mais possibilitando à vítima que fi-
zesse justiça com as próprias mãos.
Entretanto, nos delitos mais graves, a autoridade, em face da lesividade
social e sua potencialidade desagregadora dos mesmos, punia o autor do de-
lito, mesmo quando o ilícito se voltasse apenas contra bens e interesses par-
ticulares. É o que ocorria no assassinato. Configuravam-se, assim, de um
lado os delitos públicos, reprimidos pela autoridade e, de outro, os privados,
em que a autoridade intervinha apenas para garantir a composição pecuniá-
ria do dano.
Muito embora principalmente no direito romano a responsabilidade te-
nha sofrido um processo de racionalização e diferenciação, dentro do para-
digma pré-moderno a responsabilidade ainda está ligada a um pensamento
mítico e teológico, dentro de um amálgama de conhecimentos. Nesse mar-
co, eram comuns as formas de imputação que atribuíam ao divino a deter-
minação da responsabilidade, tais como sacrifícios humanos e ordálias. As
formas processuais revestiam-se de um caráter mítico ritual.
Em função do caráter rigidamente hierarquizado e estamental das socie-
dades pré-modernas, foi também comum a responsabilização coletiva e por
meio de fiadores. A responsabilidade individual não existia como regra, a
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não ser na civilização hebraica, que constitui um sistema religioso de respon-
sabilidade totalmente diferenciado da civilização romana e grega.
Outro ponto a ser destacado é que a responsabilidade primitiva era niti-
damente retribucionista, ou seja, regida pela princípio de que “o bem se
paga com o bem e o mal com o mal”29. Essas são as linhas básicas da respon-
sabilidade na Antiguidade que poderão ser melhor compreendidas dentro
da história do direito hebraico, grego e romano.
1 - O direito hebraico
1.1 - Contexto e concepção de ordem no direito hebraico
Os hebreus eram tribos Semitas nômades, que tendo atravessado a Pa-
lestina na época de Hammurabi, penetraram no Egito, havendo retornado
para a Palestina por volta do século XIII a.C. Logo após a fixação na Palesti-
na e a sua sedentarização, estabeleceu-se um poder único, pertencente a um
rei, tais como David (1029-960 a.C. ) e Salomão (960-935 a.C.).
Para o povo hebreu era impossível construir um Estado militar, já que
lhes faltava riqueza e população necessária para tanto. A sua unidade foi
construída, então, a partir de um governo teocrático com base em leis reve-
ladas por Deus e em tradições sacerdotais. Nesse sentido, “por volta de 444
a.C., Ezra, um culto sacerdote, reuniu os judeus em assembleia e começou
a ler-lhes o ‘Livro da lei de Moisés’; no fim, os sacerdotes e os chefes com-
prometeram-se a aceitar aquele corpo de legislação como a constituição e
consciência do país, e a obedecer-lhe para sempre”30. A lei com um sentido
sagrado, como símbolo da aliança com Deus, fora uma característica mar-
cante de tal civilização.
A religião hebraica foi a primeira a adotar o monoteísmo. O caráter dis-
tintivo da Bíblia estava na concepção ética e personalística de Deus. O Deus
dos profetas hebreus revelava-se por Sua vontade moral, que exigia e co-
mandava, governando absoluta e livremente os homens e a natureza. Essa
concepção de Deus desenvolveu-se gradualmente na religião israelita. Nos
primórdios, não se encontra nem a unicidade de Deus nem a Sua supe-
rioridade sobre as forças naturais, nem muito menos o Seu caráter forte-
mente voluntarístico.
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29 KELSEN, Hans. ¿Qué es Justicia?. Trad. Albert Calsamiglia. Barcelona: Ariel, 1982, p.
195.
30 DURANT, Will. A História da Civilização – Nossa Herança Oriental. v. I. Trad. Ma-
mede de Sousa Freitas. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 221.
Foi necessário um longo caminho para atingir tal concepção de Deus31,
que não foi fruto de especulação filosófica, mas da consciência religiosa que
assistira à destruição dos reinos de Israel e Judá. Assim, esse último evento
e o exílio foram vistos pelo povo hebreu como castigo de seu próprio Deus,
que elevado à condição de Deus universal valia-se das grandes potências do
mundo como Seus instrumentos, regendo o curso da história.
O Deus hebreu era quem governava a história como realidade viva com
a Sua vontade. O voluntarismo ético inerente a tal concepção implicou uma
concepção personalística de Deus, determinando a relação entre Deus e o
homem como um vínculo moral entre um eu e um Vós. A vontade de Deus
se impunha a um homem consciente de sua relação com Deus. “A comu-
nhão com Deus é essencialmente uma comunhão de vontades morais”32.
A relação do Deus hebreu com o mundo ocorria segundo os mesmos
princípios. Ele era Senhor do mundo, realizando os Seus desígnios na terra,
no exercício da liberdade incondicionada de Sua vontade. O próprio mundo
fora resultado de sua vontade como criação. Deus era o criador e o mundo,
assim como os homens, criaturas. Deus mostrava-se como totalmente outro
em relação a todas as coisas, como um ser transcendente, independente da
natureza e da própria matéria.
Deus, com já observado, seria ainda senhor da história. O pacto com o
povo de Israel estender-se-ia no tempo, que se apresentava na narrativa bí-
blica com herança de um passado. Os seus mandamentos de Deus e as suas
leis morais eram revelações do passado para orientar a vida no presente. O
futuro estaria representado na salvação do povo de Israel no Reino dos Céus,
que era universal, abarcando todas as nações. A vontade de Deus encontra-
va-se nesse horizonte temporal, que era o cenário do ativismo moral encer-
rado no Primeiro Testamento. A interpretação da história como manifesta-
ção intencional da vontade divina revelava-se como fonte de inteligibilidade
da Sua lei moral, que era sintetizada pelos Profetas nas escrituras e pelos lí-
deres religiosos na Torá.
Foi dentro do judaísmo que surgiu o gérmen para a construção da ideia
do indivíduo sob a imagem e semelhança de Deus, assim como da concepção
de liberdade do homem. O homem seria o fim e o propósito da criação, en-
contrando-se acima da natureza. Essa “concepção antropocêntrica concede
ao homem o direito de conquistar a terra”33.
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31 GUTTMANN, Julius. A Filosofia do Judaísmo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspec-
tiva, 2003, p. 29.
32 Idem. ibidem. p. 30.
33 Idem. ibidem. p. 34.

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