Implicações bioéticas do uso terapêutico da Cannabis sativa L. no Brasil

AutorCamila Mota Cavalcante, Marcelo Sarsur, Luciana Dadalto
CargoCentro Universitário Newton Paiva. Grupo de Estudo e Pesquisa em Bioética. Belo Horizonte/MG, Brasil.
Páginas1-16
1
R. Dir. sanit., São Paulo v.22n2, e0012, 2022
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.rdisan.2022.167880
Artigo Original
http://revistas.usp.br/rdisan
RESUMO
A utilização medicinal da C annabis sativa
L., usualmente chamada de maconha, é
conhecida desde tempos remotos devido a
suas elevadas propriedades terapêuticas. As
discussões acerca de seu uso medicinal no
Brasil são urgentes, notadamente porque já
há comprovação científica dos benefícios
relacionados ao tratamento de diversas
enfermidades. Es te artigo teve como foco
demonstrar que os argumentos apresentados
para criminalizar a C. sati va, além de
concorrerem para uma conjuntura racista
e criminalizadora de clas ses sociais baixas,
violam os princípios bioéticos da beneficência,
autonomia e justiça, ao impedir que o sujeito
tenha acesso a prescrições médicas adequadas
e menos onerosas, a fim de pro porcionar o alívio
de suas dores físicas e psíquicas. Para tanto,
utilizou-se da metodologia qualitativa, por
meio da qual se realizou revis ão bibliográfica
de artigos científ icos publicados em português,
entre os anos de 2015 e 2020, nas bases de
dados Google Scholar e Scientific Electronic
Library Online, juntamente com pesquisa de
resoluções da Agê ncia Nacional de Vigilância
Sanitária e do Conselh o Federal de Medicina.
De posse desses dados, constatou-se a
necessidade de democratização no acesso
à C. sativa medicinal, sendo imprescindível
o fornecimento gratuito de canabidiol pelo
Sistema Único de Saúde, bem como uma
normatização que p ermita o cultivo da C .
sativa para fins medicinais para a produção
de medicamentos no país.
Palavras-Ch ave: Bioética; Cannabis sativa L.;
Projeto de Lei 399/2015; Resolução da Diretoria
Co leg iada n. 3 27/2019.
ABSTRACT
The medicinal use of Cannabis sati va L., usually
called marijuana, has bee n known since
ancient times, due to its enhanced therapeutic
properties. Discussions about its medicinal use
in Brazil are urgent, espe cially because there
is already scientific pro of of the benefits that it
can produce in treatment of various diseases.
Therefore, it is essential that there is support
from the State so that access to C. sativa for
medicinal purposes is universal, considering
the right to health treatments as a fundamental
right, provided for in the Cons titution. However,
the use and possession for own consumption
are still criminalized. Thus, the article seek s to
demonstrate that the justifications presented to
criminalize this plant, in addition to contr ibuting
to a racist marginalization of low social classes,
violate Bioethical precepts, by preventing patients
from accessing medical prescriptions that are
adequate and less cos tly, to provide relief from
their physical and mental p ain. For that, we used
a qualitative methodolo gy. A bibliographic review
of scientific articles published in Por tuguese,
between the ye ars 2015 and 2020, was carried
out in the Google Scholar and Scientific
Electronic Library Online databases.
Resolutions of the Brazilian Health Regulatory
Agency, as well as of the Federal Council of
Medicine were also considered. With these
data, this article concludes that the need for
democratization in access to medicinal C.
sativa is imperative, by supplying patients with
CBD compounds through the Brazilian
National Public Health System, and by
enacting legislation that allows for the
cultivation of C. sativa for medicinal purposes
and for medicine production in Brazil.
Keywords: Bioethics; Cannabis sativa L.; Bill
399/2015; Resolution of the Board of Directors
n. 327/2019.
Camila Mota Cavalcante1
https://orcid.org/0000-0002-6697-4401
Marcelo Sarsur1
https://orcid.org/0000-0002-9580-0275
Luciana Dadalto1
https://orcid.org/0000-0001-5449-6855
1 Centro Universitário Newton Paiva. Grupo de Estudo e Pesquisa em Bioética. Belo Horizonte/MG, Brasil.
Correspondência:
Camila Mota Cavalcante
camilamotacavalcante@gmail.com
Recebido: 18/03/2020
Revisado: 31/01/2 021
Nova revisão: 26/10/ 2021
Aprovado: 3 0/10/2021
Conito de interesses:
Os autores declaram não haver
conflito de interesses.
Contribuição dos autores:
Todos autores contribuíram
igualmente para o
desenvolvimento do artigo.
Copyright: Esta licença permite
que outros remixem, adaptem
e criem a partir do seu trabalho
para fins não comerciais, desde
que atribuam a você o devido
crédito e que licenciem as novas
criações sob termos idênticos.
Implicações bioéticas do uso terapêutico
da Cannabis sativa L. no Brasil
Bioethical implications of the therapeutic use of Cannabis sativa L.
in Brazil
2
Implicações bioéticas do uso terapêutico da Cannabis sativa L. no Brasil Cavalcante C. M., Sarsur M., Dadalto L.
R. Dir. sanit., São Paulo v.22n2, e0012, 2022
Introdução
A planta Cannabis sativa L., no Brasil conhecida como maconha, vem sendo utilizada
para fins medicinais há milhares de anos. Registros evidenciam que o uso medicinal e
recreativo dessa planta estão presentes na história de diversas sociedades e culturas.
Há indícios de que na China, em 2738 a.C., a C. sativa era aplicada no tratamento de
distintas enfermidades, como reumatismo e malária. Na medicina tradicional indiana,
o uso terapêutico da C. sativa também era empregado em diferentes alterações
patológicas no corpo, tais quais intoxicação por álcool e opioides (BONFÁ; VINAGRE;
FIGUEIREDO, 2008).
Não obstante os benefícios terapêuticos dessa planta usufruídos ao longo da história
da humanidade, no início do século XX, em razão da visão proibicionista que ganhava
força no âmbito da política pública sobre drogas, a C. sativa passou a ser alvo de
criminalização em diversos países. No Brasil, as primeiras manifestações repressivas
quanto ao uso da C. sativa se deram em 1915, por meio do médico sergipano José
Rodrigues Dória, em seu artigo intitulado “Os fumadores de maconha: efeitos e males do
vício” (DÓRIA apud SOUZA, 2006, p. 133). Um dos principais argumentos apresentados
pelo médico era de que o uso da Cannabis resultaria em um vício incontrolável, capaz
de incitar práticas criminosas. Dória promovia um discurso enraizado em preconceitos
regionais e racistas ao declarar que o uso dessa planta deveria ser proibido por estar
inseridos em classes sociais mais baixas, presentes em regiões do Norte e Nordeste
do país, e que as práticas delitivas teriam sido transportadas da África, pelos negros,
considerados “selvagens”, a fim de se vingarem dos brancos pela escravização de seu
povo (SOUZA, 2016).
Embora os argumentos de Dória tenham ganhado força entre as elites políticas e
sociais, bem como colaborado para o entendimento de que a criminalização da C.
sativa seria a melhor forma de controlar classes subalternas, compostas por negros e
mestiços e consideradas como uma ameaça à sociedade, foi na década de 1930 que
o país deu seus primeiros passos rumo ao controle da planta e à repressão de sua
utilização (SOUZA, 2016).
Em 1932, com o advento do Decreto n. 20.930, a planta foi incluída na lista de
substâncias proscritas sob a denominação de “Cannabis indica, sendo considerada
substância tóxica de natureza analgésica ou entorpecente, com previsão de internação
e notificação compulsória àqueles que a usassem (VIDAL, 2009).
Seis anos depois, Getúlio Vargas instituiu o Decreto-lei n. 891, de 25 de novembro
de 1938, que aumentou a repressão sobre o comércio de entorpecentes, prevendo
pena de até quatro anos nos casos de “ter consigo [...] sem prescrição do médico ou
cirurgião-dentista [...] ou sem observância das prescrições legais ou regulamentares”
(VIDAL, 2009).
Nesse sentindo, Jorge Emanuel Luz de Souza (2016) elucida que a Cannabis
entraria na cena proibicionista em ter ras brasileiras na década de
1930 como parte de um largo raio de ação do governo Vargas
em relação ao “problema dos entorpecentes”, que, por sua vez,
integrava os projetos mais amplos de “biopoder ” daquele regime,
voltados para a coletividade. Foi nesse contexto que se buscou
uma atualização permanente no assunto através da participação
do país nas conferências internacionais sobr e drogas promovidas
pela Liga das Nações, a exemplo da realizada em 1936, da
incorporação de suas convenções à legislação nacional, do
intercâmbio com diversos países, da assinatura de acordos de
cooperação para a repressão das drogas com países vizinhos,
da ampliação e enrijecimento das leis brasileiras e da criação
de órgãos especializados para coordenar esse trabalho, como

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