A inacessibilidade à justiça na perspectiva da religião, da mitologia e da filosofia com aportes literários

AutorHumberto Lima de Aragão Filho
CargoMestre e Doutor em Letras (FFLCH-USP). Professor do UNIFIEO e das Faculdades Integradas Rio Branco
Páginas102-108

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Recebido em 11|12|2006 Aprovado em 15|12|2006

1 Vislumbre semântico do vocábulo "Justiça"

Iniciemos a abordagem temática com um vislumbre semântico. O vocábulo "justiça" vincula-se às palavras tsedek, díke e jus (ou ius).

Tsedek, no hebraico, significa "justiça" dentro de uma conotação social. A Torá, a Bíblia judaica, enfatiza a justiça como o exercício do equilíbrio social. É da competência dos mais abastados proteger e suprir as necessidades dos humildes e desamparados e, assim, viabilizar a redução dos desequilíbrios sociais existentes. O auxílio ao próximo é um dever e aquele que o pratica torna-se um instrumento da justiça. A Torá se enaltece moralmente, quando manifesta uma sensibilidade progressiva aos direitos humanos e aos requisitos da justiça.

Díke, no grego - originalmente, "uso", "costume", "procedimento", "hábito" -, exprime o sentido de "direito", "justiça". As páginas primorosas do Novo Testamento, escritas em grego, utilizam o termo para designar "a justiça divina". Os tradutores da Bíblia de Jerusalém, no entanto, no texto de Atos 28.4, traduziram "díke" por "vingança divina": "Quando os nativos viram o animal pendente de sua mão, disseram uns aos outros: 'Certamente este homem é um assassino; pois acaba de escapar ao mar, mas a vingança divina não o deixa viver'" (grifo nosso).

A palavra significa, ainda, no contexto neotestamentário, "processo de lei", "audição judiciária", "execução de sentença", "punição", "castigo" e "pena".

A mesma Bíblia de Jerusalém traduziu "díken" por "castigo" na Segunda Epístola aos Tessalonicenses, 1.9, e no verso 7 da Epístola de Judas: "O castigo deles será a ruína eterna, longe da face do Senhor e do esplendor de sua majestade (...)" (grifo nosso). "De modo semelhante, Sodoma, Gomorra e as cidades vizinhas, por se terem prostituído, procurando unir-se a seres de uma natureza diferente, foram postas como exemplo, ficando sujeitas ao castigo de um fogo eterno" (grifo nosso).

O sentido de direito e justiça, entre os gregos, não prescinde do pleito retórico e da moral, exprimindo uma grandeza religiosa, política e ética, evidenciando-se como fulcro da vida em sociedade.

Jus (de jungere, "ligar por jugo", "unir") ou ius, no latim, exprime o sentido de "direito", "justiça", "as leis", "lugar onde se ministra justiça", "autoridade" e "poder".

Os romanos, inicialmente, à semelhança de outros povos da antigüidade, mesclaram os conceitos de direito e justiça a um conjunto de prescrições de caráter religioso e moral. A justiça manifestava-se no factum, no comportamento, com a vivência do homem.

2 Justiça na mitologia grega

O vocábulo "direito", por sua vez, relacionase a lex, cujo sentido primeiro é "direito escrito e promulgado", envolvendo, ainda, a noção de "pacto" (entre duas pessoas ou grupos) e de "conjunto de preceitos jurídicos aceitos pela assembléia dos cidadãos romanos, depois de terem sido ouvidos sobre o assunto".

O vislumbre semântico abrange a mitologia. No enfoque mítico, deparamo-nos com Têmis, expressão imanente da legalidade presente no universo e na vida civil da pólis grega, sem, contudo, despojar-se de sua essência divina.

Têmis configura a ordem regular da natureza, possuindo como atributo a balança. No poema Os trabalhos e os Dias, Hesíodo a exalta como a justiça personificada:

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E há uma virgem, Justiça, por Zeus engendrada, gloriosa e augusta entre os deuses que o Olimpo têm e quando alguém a ofende, sinuosamente a injuriando, de imediato ela junto ao Pai Zeus Cronida se assenta e denuncia a mente dos homens injustos até que expie o povo o desatino dos reis que maquinam maldades e diversamente desviam-se, formulando tortas sentenças. (Vv. 256-262)

Embora a figura de Têmis encontre-se decorando tribunais nos últimos séculos, não se descobriu uma estátua da divindade esculpida pelos antigos gregos, e nenhuma narrativa mítica a faz sobressair, apesar de ter ocupado um lugar proeminente entre os deuses do Olimpo. Nos palácios de justiça ou tribunais, vemo-la com a balança e a espada nas mãos, com a venda nos olhos a assegurar a imparcialidade de suas sentenças.

Na Ética a Nicômaco, Livro V, Aristóteles delineia um vislumbre semântico da palavra "justiça", concedendo-lhe tríplice interpretação:

  1. A justiça como excelência moral. A "justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita." A justiça (...) "é o 'bem dos outros'; de fato, ela se relaciona com o próximo, pois faz o que é vantajoso para os outros, quer se trate de um governante, quer se trate de um companheiro da comunidade."

  2. A justiça distributiva "(...) é a que se manifesta na distribuição de funções elevadas de governo, ou de dinheiro, ou das outras coisas que devem ser divididas entre os cidadãos que compartilham dos benefícios outorgados pela constituição da cidade (...)".

  3. A justiça diortética, do grego diórthoma (correção...

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