A influência do neoconstitucionalismo na doutrina do processo justo

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132 | A DESCONSTRUÇÃO DO PROCESSO JUSTO
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A INFLUÊNCIA DO
NEOCONSTITUCIONALISMO NA
DOUTRINA DO “PROCESSO JUSTO”
A construção da teoria do “processo justo” deita suas raízes na noção
de que o processo possui função instrumental para a jurisdição. O pro-
cesso, nessa concepção, é uma “ferramenta de natureza pública indis-
pensável para a realização da justiça e da pacif‌icação social”,262 tal como
se observa na instrumentalidade do processo de Dinamarco. A preten-
sa inovação do formalismo-valorativo263 e do neoprocessualismo264 foi
a utilização do processo para a realização de “valores constitucionais”,
concedendo ao juiz poderes de correção do direito, em busca do atingi-
mento ideal de tais valores. A af‌irmação merece maior digressão.
262 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. O processo civil na perspectiva dos direi-
tos fundamentais, Revista de Processo, vol. 113/2004, pp. 9-21, Jan-Fev/2004,
Revista eletrônica. ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo: do
modelo constitucional da justiça brasileira e as relações entre processo e cons-
tituição, 2.ed., São Paulo : Editora Atlas, 2014, p. 9.
263 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. O processo civil na perspectiva dos direitos
fundamentais, Revista de Processo, vol. 113/2004, pp. 9-21, Jan-Fev/2004, Revista
eletrônica. MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil: Pressupostos
sociais, lógicos e éticos, 2.ed., São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2011,
pp. 50-53. ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo: do modelo
constitucional da justiça brasileira e as relações entre processo e constituição,
2.ed., São Paulo : Editora Atlas, 2014, pp. 101-102. MARINONI, Luiz Guilherme.
ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil, volu-
me I, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2015, pp. 79-82.
264 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos
fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário, São Paulo : Editora
Revista dos Tribunais, 2011.
ANTÔNIO CARVALHO FILHO | 133
As posições ora revisadas valeram-se, em grande medida, da pro-
dução teórica neoconstitucionalista, que visa consolidar “três marcos
fundamentais” pelo qual passaram a “doutrina e a jurisprudência” nas
últimas décadas, “criando uma nova percepção da Constituição e de
seu papel na interpretação jurídica em geral.”, quais sejam: os marcos
histórico, teórico e f‌ilosóf‌ico.265
Luís Roberto Barroso sugere que o marco histórico do neoconsti-
tucionalismo ocorreu com a “reconstitucionalização da Europa” após
a 2ª Guerra Mundial, “que redef‌iniu o lugar da Constituição e a in-
f‌luência do direito constitucional sobre as instituições contemporâ-
neas”, fundando uma nova forma de organização política, que pode
ser chamada de “Estado democrático de direito, Estado constitucional
de direito, Estado constitucional democrático”, sendo “mau inves-
timento de tempo e energia especular sobre sutilezas semânticas na
matéria.” Sustenta, pois, que a principal referência no desenvolvimen-
to do “novo direito constitucional” é a Constituição alemã de 1949
(Grundgesetz), bem como o Tribunal Constitucional Federal em 1951.
Narra que, a partir desse momento histórico, inúmeros outros países
de tradição romano-germânica seguiram o modelo alemão.266
Está longe de ser unânime na doutrina constitucional que a Constituição
alemã e a fundação do Tribunal Constitucional Alemão serviram de bases
históricas para o surgimento do movimento. Pelo contrário, na Alemanha,
a posição neoconstitucionalista é f‌lagrantemente minoritária, inclusive
nos dias de hoje. Na verdade, as disputas teórico-dogmáticas no direito
constitucional alemão, em especial sobre os direitos fundamentais, está
muito longe de ser hegemônica, nada obstante a tentativa de obliteração
da realidade por parcela signif‌icativa da doutrina brasileira.
O marco f‌ilosóf‌ico é aquilo que Barroso chama de “pós-positivismo”,
que, na sua acepção, seria conformado pela superação dos modelos
puros do jusnaturalismo e do positivismo, “por um conjunto difuso e
abrangente de idéias”. Em uma exposição, no mínimo questionável e
descompassada com o desenvolvimento teórico sobre o tema, Barroso
265 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do
Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito
Administrativo, 240, 2005, p. 2. https://doi.org/10.12660/rda.v240.2005.43618
266 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do
Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista De Direito
Administrativo, 240, 2005, p. 3. https://doi.org/10.12660/rda.v240.2005.43618
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sugere que “o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da f‌ilo-
sof‌ia e de discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensa-
mento jurídico da primeira metade do século XX.” E prossegue: “Sua
decadência é emblematicamente associada à derrota do fascismo na
Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbárie
sob a proteção da legalidade. Ao f‌im da 2ª Guerra, a ética e os valores
começam a retornar ao Direito.”267
A crítica no ponto merece exame mais aprofundado, como se
vê a seguir.
5.1. O NEOCONSTITUCIONALISMO NÃO É PÓS-
POSITIVISMO: É UM ANTIPOSITIVISMO.
O primeiro ponto que precisa ser esclarecido sobre o marco f‌ilosóf‌ico
apresentado por Barroso é que a teoria do direito por trás do neocons-
titucionalismo, se é que existe alguma, não é o pós-positivismo.
O pós-positivismo – expressão adotada por Friedrich Müller, em seu
Juristische Methodik, de 1971 – tem por pretensão a análise do fenômeno
jurídico a partir da perspectiva de sua concretização, sendo o direito um
“conceito interpretativo.”268 A preocupação central, portanto, passa a ser
da interpretação e aplicação do direito, sendo que o pós-positivismo rei-
vindica métodos de controle da atuação judicial, rompendo com a cons-
trução de Kelsen de que a decisão judicial seria um ato de vontade.269
Abboud, Garbellini e Oliveira explicam com maior precisão o ponto:
[A] aplicação propriamente dita, as teorias positivistas da primeira metade
do século passado – conscientes da polissemia inerente a todo texto jurí-
dico – passaram a af‌irmar uma espécie de espaço de discricionariedade
daquele que aplica a norma à situação concreta da vida. Com efeito, como
a aplicação sequer era pensada como um problema hermenêutico, este
último se vinculava estritamente aos problemas interpretativos, as teorias
positivistas, para af‌irmar a especif‌icidade e autonomia do direito frente a
267 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do
Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista De Direito
Administrativo, 240, 2005, p. 4. https://doi.org/10.12660/rda.v240.2005.43618
268 ABBOUD, Georges. CARNIO, Henrique Garbellini. OLIVEIRA, Rafael Tomaz
de. Introdução ao direito [livro eletrônico]: Teoria, Filosof‌ia e Sociologia do
Direito, 5.ed., São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020, item 2.5.
269 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 6.ed., São Paulo : Martins Fontes,
1998, p. 248-251

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