Para inquirir o trabalho: metodologia crítica, investigação-ação e uma nova <>/To inquire work: critical methodology, action-research and a reloaded "workers' inquiry".

AutorSanta, Roberto Della

"?‰ simples imaginar o lugar que o trabalho deveria ocupar em uma sociedade bem organizada: ele deveria constituir-se no seu núcleo espiritual mais fundamental." Simone Weil (1909-1943) Introdução (1)

O trabalho ocupa um lugar central nas sociedades: na polÃtica, na cultura e na economia. Apoia a produção social de bens ou de serviços; tem um valor social--fundamental--e é preponderante na socialização humana; garante o acesso ao consumo; é fonte de direitos sociais e de cidadania polÃtica; qualifica e situa as pessoas na sociedade em geral; parece pertinente na resolução de todos os problemas socioambientais--e ecológicos--em geral. Essa proeminente centralidade constituiu-se num caminho complexo de luta e resistência pela dignidade do trabalhador e contra a sua alienação, num raro equilÃbrio entre o individual e o coletivo, afirmando-se e reafirmando-se o trabalho humano enquanto um valor histórico universal. Na verdade, o trabalho é tudo isso e muito mais, para o indivÃduo e para o género humano. A centralidade do trabalho é um ponto de partida fulcral do trabalho teórico dentro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho (vide Antunes, 2013; Dejours & Deranty, 2010b; Rolo, 2015b; Lessa, 1997; Harribey, 2017, etc.).

A crise económica internacional de 2008 criou, para além do seu séquito de devastações, também condições globais a um retorno do espectro do trabalho no locus acadêmico, o que, em Portugal, encontrou uma nova expressão no sistema universitário português. O Grupo de Estudos Interdisciplinares Globais do Trabalho, pioneiro no sistema académico português desde o último quartel de século. ?€ medida que o seu devido impacto social passou a transbordar ambientes exclusivamente universitários e que a análise exigiu transcender as ciências sociais e humanas--ampliando-se, no tempo ou no espaço--, também se impuseram a necessidade e a possibilidade da criação do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho (OCTV), que deu lugar a um renovado e aliciante modelo de pesquisa coletiva, notadamente interdisciplinar, multiprofissional e internacional. São seus métodos, programas e conteúdos de trabalho que nos propomos a expor.

O leitmotiv filosófico de Públio Terêncio (185 a.C.-159 a.C.) não poderia ser-nos mais atual e atuante, no que se refere à nossa concepção total de mundo, nada do que é humano nos é alheio. A "perspetiva de totalidade" converte-se daà num ponto de vista excecional para a própria observação do mundo social na sua inteireza: dinâmicas, estruturas e, sobretudo, a partir do seu complexo sistema de relações sociais. Mais do que um piedoso ideal, trata-se de uma prática efetiva que fundou o próprio OCTV. Criado numa altura em que um quarto da população de Portugal vivia abaixo daquilo que os organismos multilaterais consideram o "limiar da pobreza", (2) e a maioria da população trabalhadora mundial--nos nÃveis local, regional e global--assistiu a uma brutal degradação do seu modo de vida e condições de trabalho, fruto do que veio a afirmar-se como as "polÃticas de austeridade", que em grande medida acentuaram a desigualdade social e todo o seu rol de problemas sociais crônicos: condições degradadas de trabalho, habitação, saúde, segurança social, alimentação, bem-estar social, lazer, e nexos metabólico-sociais com a natureza. O trabalho é a "questão social", em última instância, que medeia todas estas problemáticas várias. A partir do Alfa e ?”mega de todo problema social relevante e questão humana vital é que assentamos toda a nossa "direção de vida".

O OCTV é simultaneamente, uma aposta estratégica, um projecto integrador e uma certa "objectivação duradoura", ampliada tanto no tempo histórico, de longa duração, quanto no espaço social, internacionalista, de estudos, investigações e divulgação pública, com sede em Lisboa, que congrega distintas áreas do conhecimento social-histórico, instituições académicas e ocupações socioprofissionais, em diferentes paÃses de todo mundo. A sua equipa cientÃfica--assim como seu respetivo conselho consultivo--perspectivam constituir-se num coletivo intelectual global e um programa cientÃfico abrangente de pesquisas vis-à -vis o trabalho social, a saúde, a educação, a alimentação, a habitação, a situação do Estado social ("welfare state"), o sistema de segurança social, os fluxos migratórios, as polÃticas públicas, o "movimento social como um todo", a democracia substantiva, as relações internacionais, as formas históricas de opressão social, a crÃtica da economia polÃtica, a consciência adjudicada e as conceções de cultura, além dos nexos dinâmico-causais das populações, o direito à cidade (transportes, infraestruturas, etc.), a história social do mundo do trabalho, a sociabilidade humana, e as assim chamadas "questões do modo de vida" (vide Gramsci, Trotsky e Dias).

Das ciências históricas e sociais--"teoria", se quiserem--, bem como do sistema de artes, visões sociais de mundo e das humanidades--"cultura", em sÃntese--, à s ciências exatas e naturais, desde a biologia à medicina, por um lado, até à s matemáticas e a estatÃstica, por outro. Dentro daquilo que se convencionou dizer por "ciência", (3) na modernidade-mundo, fazemos questão de congregar um diálogo global, entre as mais diversas áreas disciplinares que co-habitam os saberes.

Neste texto iremos tentar tratar exclusivamente uma série de trabalhos investigativos que, durante os últimos anos, desenvolvemos junto de sindicatos de trabalhadores, ordens profissionais e/ou autarquies públicas. Mais especificamente, trataremos de perquirir com maior detalhe a dupla dimensão--teórico-metodológica e polÃtico-social--a respeito dos estudos que desenvolvemos sobre as condições de trabalho e de vida realmente existentes em categorias socio-ocupacionais tão dissimiles quanto o são professores, médicos, estivadores, tripulantes de cabine, funcionários públicos, maquinistas de comboio, operadores de metro, enfermeiros, jornalistas, oficiais de justiça, técnicos de manutenção aérea e metalúrgicos da AutoEuropa, dentre outros. Depois de vários anos, em vários sectores laborais, que incluem sucessivos movimentos de aproximação e distanciamento, desde os primeiros contactos para a pesquisa de campo, na singularidade de cada sector, até o debate público o mais amplo dos relatórios cientÃficos, acreditamos que é chegada a hora de sistematizar e organizar o material resultante de modo coerente e unitário. A partir deste comentário pretendemos daà dar azo a uma reflexão metacientÃfica ou metaprofissional sobre o conteúdo e o sentido não só do trabalhor em geral, mas também do trabalho teórico em particular. Para isso, dividimos o ensaio em momentos vários, i) pesquisar o trabalho, ii) trabalhar a pesquisa e iii) para um modelo de pesquisa coletiva, e os excursos, iv) por uma ciência social pública e orgânica ao mundo do trabalho; v) triangulação metodológica combinada ou sistema topológico de centro móvel e vi) algumas anotações à guisa de conclusão: "que fazer" e "por onde começar"?.

Pesquisar o trabalho

A negação, pusilânime ou apologética, da centralidade do trabalho--um tema importante e persistente nas ciências sociais e humanas (4)--tornou-se mais pronunciada nas últimas décadas, coincidindo com a gênese de uma "crise estrutural do capital". As origens dessa tendência são já antigas. Desde 1925, Karl Mannheim, na sua célebre obra Ideologia e Utopia, afirmava que "as classes estão a fundir-se", pois que, segundo uma ideia muito mais antiga, emprestada à tradição filosófica alemã, vivemos a "era da equalização." (5) Mas, como alguém já disse, uma e outra vez, "tudo o que é sólido se desvanece no ar".

Poucos anos passaram desde a projeção de Mannheim e, precisamente em 1929, a Grande Depressão acabara por revelar-se uma grave crise sistémica mundial, o que ocorreu ao longo dos anos 30 do século XX, variando em ritmos e intensidade, e se prolongou até à tragédia da Segunda Guerra Mundial, abrindo uma nova era, na década de 30, de revoluções e contrarrevoluções, cujo epicentro foi, mais uma vez, o trabalho. 1929 trouxe uma era de fomes, decadência e desespero--o oposto da "equalização", e foi considerada a depressão a mais longa, profunda e disseminada do século XX. A tendência real em presença, portanto, foi a de uma equalização das taxas diferenciais de exploração global pela qual a classe capitalista de todo o mundo tratou de repor a força de trabalho da humanidade sob uma forma cada vez mais intensa de subordinação social. O contrarrestar desta tendência teve então o seu ápice na revolução espanhola, na resistência ao nazifascismo e, finalmente, no pacto social, resultante da derrota deste na Europa e paÃses centrais que trouxe--por três décadas, apodadas "anos dourados" (6)--a crença na possibilidade de se conciliar concentração de riqueza e mitigação da pobreza. Rapidamente, a crise dos anos 1970 iniciou daà a sua reversão histórico-social e a pauperização absoluta retornou aos paÃses centrais, acompanhada duma aguda deslocalização de parte da produção pesada para a ?sia, a entrada do mercado chinês de trabalho super-barato (ou hiper-desprotegido) no mercado mundial, a extensão da precariedade (e das subcontratações) na Europa e o acréscimo exponencial da desigualdade social. As diversas mistificações pseudo-intelectuais já não logravam descartar a "questão social" por "preocupações anacrónicas do século XIX". A necessidade mesma de desafiar a subjugação hierárquica e estrutural do trabalho ao capital continua, assim, a ser o grande tema do nosso tempo, a saber, a instauração efectiva de uma autêntica democracia substantiva no mundo do trabalho. Pensar e agir sobre esta questão cimeira, na teoria...

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