A insustentável pretensão de negar curador ao nascituro

AutorEduardo Luiz Santos Cabette e Danilo de Almeida Martins
CargoDelegado de polícia aposentado, mestre em Direito Social, professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal / Defensor público federal, pós-graduado na Escola Superior do Ministério Público Federal na área do Processo Civil
Páginas18-50
ANÁLISE
A INSUSTENTÁVEL
PRETENSÃO
DE NEGAR
CURADOR AO
NASCITURO
Por EDUARDO LUIZ SANTOS CABETTE
Delegado de polícia aposentado, mestre em Direito Social, professor de
Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal
Com Danilo de Almeida Martins
Defensor público federal, pós-graduado na Escola Superior do Ministério
Público Federal na área do Processo Civil
Deve-se compreender a função de curadoria especial pela
Defensoria Pública diante de um caso de aborto envolvendo estupro
de menor, mesmo que a lei autorize o procedimento. Presente
qualquer ameaça à vida do feto, ele tem defesa assegurada. Não
há que se falar, portanto, na inexistência de “sujeito de direito”
EDUARDO CABETTE e DANILO MARTINS
PRETENSÃO DE NEGAR CURADOR AO NASCITURO
19
E
m mais um caso de aborto não
punível em razão de gravidez
originada de estupro, envolven-
do agora uma menor de 12 anos
no Estado do Piauí, surge nova controvérsia.
A corriqueira nomeação de curador espe-
cial ao nascituro nesses procedimentos é
posta em xeque pela deputada federal Sâ-
mia Bomm. Alega a parlamentar, em pe-
dido dirigido ao CNJ, inexistir base legal
para representação de fetos em juízo, bem
como não serem eles “sujeitos de direito”, a
não ser após o nascimento. A deputada pre-
tende que o Conselho Nacional de Justiça
crie “uma diretriz que proíba a nomeação
de curadores para defender fetos em casos
de crianças e adolescentes grávidas após
estupro” (grifo no original)1. Ainda segun-
do a parlamentar: “A nomeação de uma
defensora no caso [...] cria uma ‘colisão de
direitos’ entre alguém que legalmente não
os tem e de uma criança vítima de estupro,
a quem o Código Penal assegura a possi-
bilidade de interromper a gravidez” (grifo
no original)2.
1. Um abismo de contradições
e ignorâncias fáticas, éticas
e jurídicas
Nietzsche já disse em seus aforismos que
“se olhas demoradamente um abismo,
o abismo olha para dentro de ti”3.
Acontece que muitas vezes, mesmo sem
o saber, é impossível a algumas pessoas
olhar para o abismo, a não ser em frente a
um espelho, já que o abismo insondável se
acha nelas mesmas.
A pretensão da parlamentar supraexposta
revela exatamente isso, ou seja, que suas
ideias, ademais compartilhadas por muitos,
são um profundo abismo de vazio e para-
doxos, absolutamente insustentáveis seja
sob o ângulo fático, ético ou jurídico.
Quando se refere a uma “colisão de direi-
tos” para armar que na realidade se tra-
ta de uma falsa colisão porque o nascitu-
ro não teria direitos, tal proposição é tão
problemática que se torna até difícil de ser
contraditada. Vamos tentar.
Para que a proposição seja admissível,
deve-se pressupor que o nascituro não
tem nenhum direito, o que é falso. Outra
pressuposição é a de que num procedi-
mento de autorização de aborto impunível
já é indiscutível o direito da gestante ao
aborto, o que, por obviedade, também é
falso. Ora, se assim fosse, não seria ne-
cessário procedimento nenhum para a re-
alização do aborto, anal este é praticado
por médico e no hospital, e não por juí-
zes, promotores, advogados ou defensores
públicos no fórum. Signica dizer que,
a partir do momento que há um proce-
dimento judicial para que, após a devida
e fundamentada decisão, se autorize ou
não o aborto, há necessariamente uma
“colisão de direitos” a ser ali solvida. Há
uma ameaça de lesão a direitos que, por
força do princípio constitucional da “ina-
ANÁLISE
20 REVISTA JUDICIÁRIA DO PARANÁ #27 I SET-OUT-NOV 2023
fastabilidade da jurisdição”, não pode ser
subtraída da dialética jurisdicional com os
corolários do devido processo legal, ampla
defesa e contraditório. É disposto no artigo
5º, inciso XXXV, CF: “A lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito.”
E, no mínimo, há que discutir se realmen-
te o caso se trata de um abortamento im-
punível e, especialmente, se não se trata
de uma gravidez que não comporta a prá-
tica do aborto por normas técnicas, já que
ultrapassado o limiar entre
uma vida intrauterina in-
viável fora do útero e uma
vida humana já em condi-
ções de parto e sobrevivên-
cia, além da questão de que
abortos tardios são ainda
mais arriscados para a saú-
de e a vida da própria ges-
tante. As normas técnicas e
as recomendações médicas
apontam, nesse ponto, para
o período de 20 semanas, com possível
alongamento até, no máximo, 22 semanas.
É isso que indica o texto revisado pelo
professor doutor Jefferson Drezzet Ferrei-
ra, que congrega as posições do “Núcleo
Especializado de Promoção e Defesa dos
Direitos da Mulher da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo”, da “Escola da
Defensoria Pública do Estado de São Pau-
lo” e da própria “Defensoria Pública do
Estado de São Paulo”, com divulgação em
página do “Ministério Público do Estado
de São Paulo”: “Nos casos de violência
sexual, o aborto é permitido até a 20ª se-
mana de gestação, podendo ser estendido
até 22 semanas, desde que o feto tenha
menos de 500 gramas”4.
Note-se que por essa mesma motivação o
pedido da deputada é também mal endere-
çado. Nem mesmo a “lei” pode afastar a
jurisdição e o devido processo legal impos-
tos constitucionalmente. Poderia, então, al-
guma “diretriz” do CNJ? É claro que não.
Na verdade, a pretensão da parlamentar
nem mesmo por ela direta-
mente poderia ser exerci-
da, ou seja, ela não poderia
apresentar um projeto de
lei cujo conteúdo fosse sua
intenção, porque tal projeto
de lei seria inconstitucional.
Dessa forma, acaba a parla-
mentar tentando um cami-
nho absolutamente tortuoso,
fomentando um ilegítimo
ativismo judicial violador
da separação dos poderes em franco pre-
juízo ao nosso já tão combalido Poder Le-
gislativo. É algo terricante assistir a uma
parlamentar insuar o ativismo judicial
ilegítimo e inconstitucional. Já se viu falar
em corporativismo quando um membro de
um órgão, poder, prossão etc. exagera na
defesa de seus pares e prerrogativas, mas o
que se vê aqui é um estarrecedor corpora-
tivismo reverso, no qual um membro de um
poder incentiva, possivelmente ignorando
o que faz, o solapar das prerrogativas do
legislativo a que pertence.
A ALGUMAS PESSOAS
É IMPOSSÍVEL OLHAR
PARA O ABISMO, A
NÃO SER EM FRENTE
A UM ESPELHO,
JÁ QUE O ABISMO
INSONDÁVEL SE
ACHA NELAS MESMAS

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT