Intersexualidade e o tensionamento do critério proibido de discriminação sexo/Intersexuality and the tensioning of the prohibited criterion of discrimination sex.

AutorLeivas, Paulo Gilberto Cogo

A concepção de diferença sexual localizada a partir de um modelo binário pode ser datada historicamente, assim como é a emergência e a consolidação de uma ciência convocada a "encontrá-la" nos corpos, de modo a reiterar a existência de dois (e somente dois) sexos estáveis, incomensuráveis e opostos (Londa SCHIEBINGER, 1987; Ludimila JORDANOVA, 1989; Thomas LAQUEUR, 2001; FabÃola ROHDEN, 2003) (1). A relação normativa entre identidade e genitália produz efeitos na designação a um ou a outro sexo no nascimento e também naquilo que se projeta para esse corpo, no sentido de encarnar determinados ideais normativos sobre o sexo, o gênero e a sexualidade (Mauro CABRAL, 2009). Nesta perspectiva, pessoas intersexo, que são aquelas que "nascem com caracterÃsticas sexuais, sejam elas genéticas, anatômicas e/ou referentes aos órgãos reprodutivos e genitais, que não se enquadram nas definições tÃpicas de corpos masculinos ou femininos" (ONU, 2019), serão produzidas enquanto "anormais" (Paula MACHADO, 2005).

Há de se considerar as pesquisas que discutem e questionam o status quo biomédico, no sentido de pesar os direitos das pessoas intersexo, muitas vezes submetidas a uma suposta adequação/normalização de sexo/gênero. Por um lado, são desenvolvidas pesquisas que demonstram as violações de direitos a que são submetidas pessoas intersexo, assim como as denúncias e análises produzidas pelo movimento polÃtico intersexo ao redor do mundo (CABRAL, 2009; Iain MORLAND, 2009; Morgan CARPENTER, 2016; Janik BASTIEN-CHARLEBOIS, Vincent GUILLOT, 2020; Thais Emilia dos SANTOS, 2020; Amiel VIEIRA et al., 2021). Por outro lado, ao se levantar marcos jurÃdicos internacionais e nacionais na direção da proteção dessa população, evidencia-se que no Brasil o estabelecimento desses parâmetros está longe de ser consolidado (LEIVAS et al., 2020). Nesse sentido, o presente artigo busca contribuir para esse debate, considerando como enquadre, mais especificamente, a norma que proÃbe a discriminação por motivo de sexo, prevista no artigo 3, IV, da Constituição Federal, que tem sido interpretada como incluindo a proibição de discriminação de homens e mulheres (Julie GREENBERG,2012) e em razão da orientação sexual e identidade de gênero (Roger RIOS, 2012).

Considerando que o conteúdo jurÃdico do critério proibido de discriminação sexo não é estático e reflete as lutas por reconhecimento de diversos grupos discriminados, este artigo busca discutir a interpretação do dispositivo normativo sexo a partir dos tensionamentos provocados pela intersexualidade. Para tanto, foi realizada revisão bibliográfica de literatura e de legislação nacional e estrangeira sobre intersexualidade, bem como sobre o conteúdo do critério proibido de discriminação sexo, considerando a necessidade de proteção antidiscriminatória das pessoas intersexo.

O artigo proposto é resultado das investigações do Projeto de Pesquisa "Intersexualidades e reconhecimento de sujeitos de direito: uma abordagem interdisciplinar", vinculado à Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No primeiro eixo do referido estudo, analisamos instrumentos normativos e decisões internacionais e de outros paÃses que tratam do registro civil de pessoas intersexo de forma a amparar a defesa dos direitos humanos desses sujeitos no Brasil, com base em parâmetros jurÃdicos antidiscriminatórios e avancem as possibilidades de retificação registral brasileira (LEIVAS et al., 2020). No segundo eixo, identificamos, a partir da perspectiva da (in)justiça epistêmica, as violações de direitos humanos suscitadas pelos procedimentos precoces, irreversÃveis e normalizadores de designação de sexo binário realizados em crianças intersexo. Analisamos, também, as reverberações em organizações de direitos humanos, assim como na produção de novas legislações em outros paÃses (Paulo LEIVAS et al., 2023).

  1. Produção da intersexualidade e a discriminação de corpos diversos

    Corpos intersexo desestabilizam a cisgeneridade, a heterossexualidade, a endossexualidade e a ausência de deficiência enquanto normas, provocando fraturas nos saberes de áreas à s quais foi atribuÃdo, historicamente, o poder de nomear e regular esses corpos, como as ciências biomédicas e o direito. Cisgeneridade, endossexualidade e corponormatividade foram termos cunhados pelos movimentos trans, intersexo e da deficiência, respectivamente, como formas de nomear e interpelar os sistemas normativos que inscrevem e promovem distinções entre os corpos (Morgan CARPENTER et al., 2021; Viviane VERGUEIRO, 2015; Anahi MELLO, 2016).

    De acordo com Jaqueline Gomes de Jesus (2012, p.8), cisgêneras são "pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento". Já a endossexualidade faz referência à quelas que nasceram com caracterÃsticas sexuais, sistema reprodutor, anatomia genital e carga genética cromossômica e hormonal que se enquadram nas definições binárias de feminino e masculino (Guilherme VICENTE, 2020). Enquanto a corponormatividade, como traduz Anahà Guedes de Mello (2016, p. 3271), "considera determinados corpos como inferiores, incompletos ou passÃveis de reparação/reabilitação quando situados em relação aos padrões hegemônicos corporais/funcionais". Tais normativas incidem de diferentes formas sobre os corpos intersexo, ocasionando discriminações e violações de direitos humanos.

    As várias camadas de discriminação geradas por concepções sociais normatizantes fazem com que esse olhar atravesse concretamente corpos de bebês e crianças intersexo pela ação de tecnologias biomédicas--dentre as quais a realização de cirurgias genitais precoces e de tratamentos hormonais para moldar tais corpos de acordo com as expectativas binárias de gênero e funcionalidade sexual e reprodutiva. Além disso, a estrutura da aparência, ou Lookism, conforme elencado por Suzanne Kessler (1998), impacta no cuidado médico da intersexualidade sob a justificativa de que os corpos intersexo devem se apresentar como futuros cumpridores do imperativo heterossexual (Katrina KARKIZIS, 2008; KESSLER, 1998; Iain MORLAND, 2005). Ainda a esse respeito, Bastien-Charlebois e Guillot (2018) apontam que a ideia de sucesso médico, intimamente relacionada ao cumprimento de uma norma estética, nem sempre condiz com a percepção de sucesso das pessoas intersexo em relação aos seus corpos. E mais: os procedimentos cirúrgicos e hormonais estéticos e precoces são denunciados pelos ativistas intersexo como mutiladores, pois além de não serem consentidos pelos próprios sujeitos, ocasionam perda da sensibilidade nos órgãos genitais, além de dores. Essas violências podem, ainda, ocorrer chanceladas pelo poder médico e se tornam ainda mais graves pelo segredo e pelo silêncio que isolam o indivÃduo da sua própria experiência intersexo.

    Desde uma perspectiva crÃtica à s normatizações médicas, nota-se que há uma aliança entre os saberes das ciências humanas e sociais e o ativismo polÃtico intersexo, especialmente no que se refere a considerar os procedimentos médicos precoces, desnecessários e não consentidos como violações de direitos humanos (MACHADO, 2005; CABRAL, 2009; LEIVAS et al., 2021), que evidenciam a violência da essencialização das lógicas binária, cis, endossexual e heteronormativas operando sobre os corpos intersexo. A manutenção dessa lógica binária é percebida na vida cotidiana de diversas maneiras, como no caso em que a divisão entre meninos e meninas se desdobra em outras distinções, por exemplo, na educação (corpos considerados no ensino de biologia, organização de filas, banheiros, esportes, brincadeiras a partir do gênero), nas mÃdias (ao se direcionar propagandas infantis ou para meninos ou para meninas, por exemplo) e no Direito (direito previdenciário, militar, desportivo, civil, formulados a partir da diferenciação das categorias homem/mulher). Particularmente o Direito, campo no qual se inscrevem as análises do presente artigo, se organiza e organiza as pessoas a partir de contrastes de gênero e utiliza a lógica binária como suporte para o sistema jurÃdico, seja para definição do estado civil, do nome, ou para acessar direitos que decorrem de um ou outro sexo/gênero (Daniel BORRILLO, 2011).

    A partir das análises de Annemarie Mol (2005) sobre o corpo múltiplo, Amanda Schiavon (2021) sugere, então, que a intersexualidade é múltipla e dinâmica. Tal multiplicidade emerge da coordenação e da articulação de diferentes objetos e instituições, tais como: biomédicas, ativistas, familiares, ciências humanas e sociais, jurÃdicas, educacionais e midiáticas. A autora propõe-se a analisar, ainda, a intersexualidade desde o idioma da coprodução (Sheila JASANOFF, 2004), ou seja, compreender as interações heterogêneas entre os objetos que se coproduzem mutuamente (tecnologia, ciência, sociedade, ordem social), ressaltando sua inseparabilidade ontológica de modo que não seja dada primazia a nenhum dos elementos envolvidos. Dessa forma, o idioma visa a superar o determinismo e as dicotomias (natureza/cultura, mente/corpo, matéria/discurso), tendo como base compreender os diálogos, as sobreposições, as reiterações entre os objetos pesquisados, e isso não é possÃvel em produções cientÃficas que pautam a separação e o distanciamento de seus objetos de conhecimento. Como ressalta Schiavon (2021), os saberes biomédicos participam dessa construção, patologizando a experiência intersexo e propondo uma série de procedimentos clÃnico e cirúrgicos precoces.

    Um dos pontos de ligação entre as diferentes instituições, narrativas, práticas e contextos performativos que produzem a intersexualidade como múltipla, ainda que atuando de formas...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT