Ius Constitutionale Commune: a potencial expansão da proteção das minorias sexuais na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a partir do reconhecimento do status de "categoria suspeita" e da incorporação dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos/Ius Constitutionale Commune: the potential expansion of the sexual minorities' protection in the Federal Supreme Court's case law through the recognition of the "suspect classification" status and the incorporation of the Inter-american Court of Human Rights' precedents.

AutorLeal, Mônia Clarissa Hennig

Introdução (1)

A luta empreitada pelas minorias sexuais na busca pela concretização da igualdade, dentro da sua dimensão de reconhecimento, tem galgado significativos resultados nessa última década através da atuação do Supremo Tribunal Federal, principalmente no que diz respeito ao papel contramajoritário exercido pela jurisdição constitucional na proteção das minorias socialmente estigmatizadas.

No entanto, no que condiz àexpansão da proteção dessas minorias através da incorporação dos padrões mÃÂnimos fixados pelo Sistema Interamericano de Proteção aos Direito Humanos, esse ainda é um processo que anda a passos vagarosos na realidade dos julgados do Supremo Tribunal Federal, notando-se a existência de certa relutância no tocante àefetivação de um diálogo interjurisdicional e na execução do controle de convencionalidade por parte do mais alto tribunal brasileiro. Contudo, tomando-se como referência a proposta de desenvolvimento de um Ius Constitucionale Commune Latinoamericano (ICCAL), têm adquirido impulso os debates acerca do dever de incorporação dos standards do corpus iuris interamericano pela jurisdição constitucional dos Estados que integram a região, vinculação essa que inclui também o Supremo Tribunal Federal.

Diante disso, tem-se como problema central da pesquisa o seguinte questionamento: no que diz respeito àexpansão dos direitos e garantias voltados a proteger as minorias sexuais, há uma vinculação do Supremo Tribunal Federal em incorporar a noção de "categoria suspeita", aplicando-se um escrutÃÂnio estrito de proporcionalidade na apreciação de questões que envolvem a garantia do direito de igualdade e de não-discriminação desses grupos, na perspectiva desenvolvida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em relação às minorias sexuais, de maneira que possa ser reforçada a sua proteção?

A fim de responder ao problema de pesquisa proposto, tem-se como objetivos especÃÂficos: 1) traçar um panorama das decisões do Supremo Tribunal Federal julgadas entre 2010 até 2020 envolvendo minorias sexuais; (2) 2) estudar a doutrina das "categorias suspeitas" e seu desenvolvimento teórico e jurisprudencial na Corte Interamericana de Direitos Humanos, evidenciando os casos em que a Corte IDH reconheceu o status de categoria suspeita em relação às minorias sexuais; e, por fim, 3) analisar se há uma vinculação da jurisdição constitucional brasileira em adotar os padrões mÃÂnimos de proteção às minorias sexuais desenvolvidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, na perspectiva de um corpus iuris interamericano, e, principalmente, se existe o dever de incorporar, em âmbito nacional, o reconhecimento da noção de "categoria suspeita" de discriminação em relação às minorias sexuais através da atuação do Supremo Tribunal Federal. Para o desenvolvimento da pesquisa proposta, utilizar-se-á o método de abordagem dedutivo e o método de procedimento analÃÂtico, valendo-se da pesquisa bibliográfica e jurisprudencial no intuito de melhor embasar a análise.

1. Minorias sexuais na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na década de 2010

As minorias, de uma maneira geral, em razão de condições estruturais da sociedade, tendem a ser recorrentemente expostas a situações de discriminação. No caso das minorias sexuais, mais especificamente, essa situação é agravada, tendo-se em vista que esse grupo é acometido não apenas por situações de discriminação, violência, marginalização e elevados ÃÂndices de homicÃÂdio (3), como também é prejudicado por não lograr articulação polÃÂtica suficiente para ter seus interesses atendidos, situação essa que faz com que suas reivindicações acabem sucumbindo àvontade das maiorias eventuais. É diante desse contexto que o Supremo Tribunal Federal se identifica como locus adequado para promover a proteção dos direitos fundamentais desses grupos. (MELLO, 2020, p. 18)

É no exercÃÂcio de seu poder contramajoritário que esse caráter protetivo do STF se evidencia com maior rigor, uma vez que, em prol de proteger os direitos fundamentais das minorias, invalida decisões majoritárias (ou seja, pautadas por uma lógica de democracia representativa), tendo em vista que "a democracia não equivale àmera prevalência da vontade das maiorias, mas corresponde a um ideal polÃÂtico mais complexo, que também envolve o respeito aos direitos fundamentais e a valores democráticos". (SOUZA NETO; SARMENTO, 2016, p. 38)

Atualmente, o mais alto tribunal brasileiro tem adotado uma postura favorável àexpansão da proteção das minorias por intermédio de sua atuação contramajoritária, no entanto, ao longo de sua história, o STF nem sempre adotou uma postura expansiva em relação àproteção dos direitos fundamentais, de tal modo que o modelo de prestação jurisdicional incorporado por ele--voltado àimplementação dos mandados da Constituição Federal de 1988--foi se alterando ao longo do tempo.

No perÃÂodo imediatamente subsequente àpromulgação da Constituição Federal de 1988 até meados dos anos 2000, o STF adotava uma postura de autocontenção, deixando de interferir em questões que fossem consideradas de cunho polÃÂtico, sendo que tal modus operandi se justificava diante do cenário de transição vivido pelo Brasil durante esse perÃÂodo, sendo o Supremo Tribunal Federal formado por Ministros nomeados ainda pelo regime militar, não estando consolidada, em sua atuação, uma lógica de implementação de direitos, havendo grande preocupação e cautela em não proferir decisões que pudessem desestabilizar os ambientes públicos ou que comprometessem o processo de sedimentação da democracia no Brasil. (MELLO, 2020, p. 24)

A partir do ano 2000, contudo, esse panorama entra em um processo de alteração gradativa, tendo em vista que a democracia já se encontrava em fase estável de consolidação e que a maioria dos Ministros do STF já haviam sido substituÃÂdos (4), abrindo espaço para que os novos magistrados pudessem trazer uma visão renovada em relação aos papéis desempenhados pelo direito e seus intérpretes, abrindo caminho às doutrinas da efetividade e do neoconstitucionalismo (5). (MELLO, 2020, p. 24-25)

Nesse influxo, nos últimos 10 anos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal deu importantes passos em direção a uma proteção mais ampla e atenta ao resguardo dos direitos fundamentais das minorias sexuais em âmbito nacional, buscando exemplificar essa atuação, em seguida, explorar-se-ão cinco decisões emblemáticas que destacam essa posição do mais alto tribunal brasileiro, sendo elas: I) ADI 4277/DF--decisão que equiparou as uniões estáveis homoafetivas às heteroafetivas; II) ADPF 291/DF--decisão que não recepcionou o crime de pederastia, previsto no Código Penal Militar; III) ADI 4275/DF--decisão que resguardou o direito àalteração no registro civil do prenome e gênero das pessoas transexuais; IV) ADO 26/DF--decisão que criminalizou as condutas homotransfóbicas; e, por fim, V) ADI 5543/DF--decisão que concedeu o reconhecimento do direito aos homens homossexuais de serem doadores de sangue.

1.1 A equiparação das uniões estáveis homoafetivas às uniões estáveis heteroafetivas (ADI 4277/DF)

No ano de 2011 o Supremo Tribunal Federal, com a ADI 4277/DF, prolata a primeira de uma série de decisões julgadas nos anos subsequentes, as quais foram estruturadas a fim de promover a ampliação da proteção aos direitos fundamentais das minorias sexuais.

A decisão popularmente denominada como decisão da "união estável homoafetiva" é um marco importante nesse processo, não apenas em razão de sua grande repercussão, mas também por ter ocasionado um amplo debate em relação a "temática homossexual no Supremo Tribunal Federal, essa ação se tornou significativa para a pauta do movimento LGBTQI+ no Brasil, como um dos marcos mais importantes sobre os embates polÃÂtico-jurÃÂdicos do movimento.". (MONICA, 2020, p. 1371)

A ADI 4277/DF, que contou com a relatoria do Ministro Ayres Britto, concedeu interpretação conforme àConstituição ao artigo 1.723 do Código Civil, reconhecendo as uniões homoafetivas como famÃÂlia e equiparando-as às uniões estáveis heteroafetivas, garantindo aos casais do mesmo sexo não só o direito de formalizar suas uniões estáveis, como de convertê-las em casamento, do mesmo modo que é garantido aos casais heterossexuais. (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2011, p. 04-05)

Com a sentença, alteraram-se substancialmente os padrões de tratamento em relação aos casais do mesmo sexo, que passaram a vincular não apenas o Poder Judiciário, em seus mais diversos graus, mas também se irradiaram e influenciaram na atuação de toda a administração pública. (PACHECO, 2016, p. 252-253)

O precedente saúda, nessa perspectiva, o princÃÂpio da igualdade, vedando, tanto ao legislador quanto ao intérprete legal, que confiram, no âmbito de suas atuações, qualquer tipo de "tratamento diferenciado às demandas judiciais ou administrativas em que figurem relações de pares homoafetivos, já que aos mesmos foi garantida igual proteção e reconhecimento de que gozam as uniões de casais homoafetivos.". (PACHECO, 2016, p. 253)

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