A jurisdição constitucional

AutorJosé Adércio Leite Sampaio
Ocupação do AutorMestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Professor do Curso de Graduação e Pós-Graduação da PUC-MG. Procurador da República
Páginas21-101
C
APÍTULO
II
A JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL
SEÇÃO I
CONCEITO DE JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL
Jurisdição, como é sabido desde a teoria geral do processo, é
uma das maiores manifestações da soberania de um Estado. Através
dela, ele, Estado, conhece, de forma neutra (Frisenhann), os confli-
tos ocorrentes, de interesse ou não, e declara, em seu nome e não em
nome das partes,
1
o direito aplicável ao caso, podendo executar o
decisum, se provocado, na persistência de uma “lide insatisfeita”.
2
É
freqüente a associação a essa concepção material-operacional de ju-
risdição do caráter de afirmação ou reconhecimento de conformidade
de um ato ou fato com a ordem jurídica, e outro, social, de perfeição
(perfectibilidad) e inalterabilidade: res judicata pro veritate habetur.
3
1CHIOVENDA. Institutições de Direito Processual Civil, II, p. 9 et seq.; p. 11; FRIESENHAHN.
La Giurisizione Costituzionale Nella Repubblica Federale Tedesca, p. 5.
2ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLHO. Estudios de Teoría General e Historia del Proces-
so (1945-1972), t. I, p. 57-58.
3WINTRICH. Aufgaben, Wesen und Grenzen der Verfassungsgerichtsbarkeit im Vom Bon-
ner Grundgesetz zur gesamtdeutschen Verfassung, p. 203 et seq.; 205.
Sem título-22 21/7/2010, 12:0421
22 A CONSTITUIÇÃO REINVENTADA
A contenciosidade ou contraditório de parte descolam do núcleo
de referência do sentido de jurisdição, em meio à existência de um
contencioso não jurisdicional ou arbitral e de uma jurisdição não con-
tenciosa, por mais que ambas se assimilem a uma atividade administrativa
de empenho jurisdicional, carecendo, então, do elemento formal da
coisa julgada. Se o conflito, a oposição, o contencioso já não mais
ocupa o centro de gravidade do conceito de jurisdição, será mais fácil
aceitar uma jurisdição especial que, pelo menos, lança a um outro
patamar a noção de contenciosidade e mitiga a idéia de sujeitos ou
partes processuais, detentores de interesses concretos e, em regra, pa-
trimoniais, para pôr em seu lugar ou a seu lado um “conflito” de
posições ou de interesses de proteção da ordem jurídico-constitucional.
Critérios há de classificação das diferentes manifestações de
poder ou da função jurisdicional, quanto à origem, quanto à forma
ou quanto à matéria, ressaltando-se nesse último uma distinção,
importante ao nosso estudo, entre jurisdição ordinária e jurisdição
constitucional, esta cuidando dos conflitos de natureza constitucio-
nal; aquela abraçando todos os assuntos conflituosos e residuais,
abrigados nos conceitos, formal e material, de jurisdição citados.
Surgem, todavia, dificuldades para precisar exatamente o que
seja “matéria de natureza constitucional”. Seria mais propriamente
a fiscalização da constitucionalidade?
4
Para Di Ruffia, sim, embo-
ra enalteça também o julgamento de ilícitos praticados por titulares
de órgãos constitucionais.
5
Esse conteúdo se enriquece com a com-
preensão do “contencioso da liberdade” ou, na dicção de Cappelletti,
com o alvorescer da “jurisdição constitucional da liberdade”, própria
para a proteção, em gênero, dos direitos fundamentais.
6
O objeto
dessa justiça constitucional é ainda mais amplo e tende a se expandir
com o prestígio do Direito Constitucional, açambarcando hoje os
conflitos de atribuição entre órgãos constitucionais e federativos,
além do contencioso eleitoral.
7
Não escapa, assim, à observação de
Didier Maus, a compreensão sob o rótulo de “contencioso consti-
tucional” de todo o conjunto de litígios que podem nascer da ativi-
4CANOTILHO. Direito Constitucional, p. 1042.
5DI RUFFIA. Diritto Costituzionale, p. 543 et seq.
6CAPPELLETTI. La Giurisdizione Costituzionale Della Libertà, p. 5 et seq.; O controle
Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado, p. 24.
7CAPPELLETTI. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Com-
parado, p. 24-26.
Sem título-22 21/7/2010, 12:0422
23
A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
dade das instituições constitucionais, assim como os processos que
permitem resolvê-los.
8
Se bem que as palavras “contencioso”, “li-
tígio” e “processo” demandem uma precisão maior, uma concep-
ção extremamente larga de “jurisdição constitucional” chegaria a
reunir todos os mecanismos constitucionais de formação e execução,
no plano de sua relevância constitucional, das opções jurídico-polí-
ticas, induzidos e disciplinados pelas normas constitucionais, atraindo,
pelo menos potencialmente, todos os atores da peça política repre-
sentada no cotidiano da vida nacional.
Por essa imprecisão de contornos, há quem se atente mais ao
lado formal-orgânico da concepção. A jurisdição constitucional seria
prestada, então, fundamentalmente por um órgão especializado, en-
carregado da missão de resolver os conflitos constitucionais que lhe
fossem deferidos. Fix-Zamudio não tergiversa ao concentrar-se no
sentido estrito e, para ele, tecnicamente mais acertado da expressão,
a compreender o estudo da atividade de verdadeiros tribunais, for-
mal e materialmente considerados, que conheçam e resolvam as con-
trovérsias de natureza constitucional de maneira específica.
9
A indagação, todavia, pode desafiar duas posições distintas e,
de novo, referida a um sentido formal do órgão incumbido da fun-
ção e em sentido material da função em si mesma considerada. Sob
a primeira perspectiva, acertado está o mestre Fix-Zamudio. Sob a
segunda, não. A jurisdição-função, dentro dos limites competen-
ciais, pode ser exercida tanto de forma concentrada, quanto difusa,
por tribunais especializados ou ordinários. A questão se centra em
saber sobre que ângulo estamos vendo a resposta.
A conciliação de critérios formais e materiais, a nosso ver, pode
ser conseguida com a identificação de jurisdição constitucional como
uma garantia da Constituição, realizada por meio de um órgão juris-
dicional de nível superior, integrante ou não da estrutura do Judiciário
comum, e de processos jurisdicionas, orientados à adequação da atua-
ção dos poderes públicos aos comandos constitucionais, de controle
da “atividade do poder do ponto de vista da Constituição”,
10
com
destaque para a proteção e realização dos direitos fundamentais.
11
8MAUS. La Notion de Contentieux Constitutionnel sous la Ve République, 1980. Apud
TURPIN. Contentieux Constitutionnel, p. 18.
9FIX-ZAMUDIO. Veinticinco Años de Evolución de la Justicia Constitucional, p. 15.
10 LLORENTE. Tendencias Actuales de la Jurisdicción Constitucional en Europa, p. 156.
11 BARACHO. Processo Constitucional, p. 99.
Sem título-22 21/7/2010, 12:0423

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT