Jurisdição constitucional e divisão dos poderes

AutorJosé Adércio Leite Sampaio
Ocupação do AutorMestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Professor do Curso de Graduação e Pós-Graduação da PUC-MG. Procurador da República
Páginas425-561
C
APÍTULO
I
JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL
E DIVISÃO DOS PODERES
SEÇÃO I
ASPECTOS DOGMÁTICOS DO PRINCÍPIO
DA DIVISÃO DOS PODERES
A teoria da separação dos poderes resume uma ordem de idéias
de organização do poder, que passa por Aristóteles,
1
Políbio,
2
Marcílio
de Pádua,
3
Harrington,
4
Locke,
5
Swift
6
e Bolingbroke,
7
mas que
1Com a teoria da constituição mista, em que cada classe deve participar dos órgãos
constitucionais, como forma de equilíbrio das classes sociais, distinguindo as várias
funções da polis – senado, tribunal popular e outras autoridades: Política, p. 81, 99, 111.
2Ainda é recorrente a idéia aristotélica de constitutição mista, associada a uma especiali-
zação de órgão político a cada classe e a um controle recíproco, pois um poder de uma
classe neutraliza a dos outros, fazendo com que haja equilíbrio político. Todos temem o
controle dos outros. POLÍBIO. Historia, Livro VI, p. 10 e 18.
3MARSILIUS DE PADUA. Defensor Pacis. Bergamo: Minerva Italica, 1976: reúne a teoria
da constituição mista aristotélica com elementos da democracia liberal.
4HARRINGTON. The Commonwealth of Oceana. London, 1656: distingue a função legislativa
da função de aplicação das leis.
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426 A CONSTITUIÇÃO REINVENTADA
teve em Montesquieu sua fórmula mais acabada e, também, a que
ficou mais conhecida. Em seu livro “Espírito das Leis”, Montesquieu,
interpretando de modo particular a Constituição inglesa, introduz o
vocábulo “separação de poderes”, que, para alguns já era emprega-
da nos debates britânicos,
8
na distinção que faz entre um Poder
Legislativo, um Poder Executivo das Coisas que dependem do Di-
reito das Gentes – adiante chamado de Poder Executivo do Estado –
e um Poder Executivo das Coisas que dependem do Direito Civil –
cuja denominação passará a ser Poder de Julgar. Sua originalidade,
em face das doutrinas anteriores, estava exatamente em distinguir, em
um só corpo doutrinário, o poder de julgar, antes identificado como um
poder executivo, do poder legislativo e simultaneamente do poder
governamental ou executivo da administração.
9
A essa divisão de
poderes, achava-se associada a independência de cada um dos ra-
5Identificação de quatro funções: legislativas, executivas (de aplicação das leis), federa-
tivas (de guerrear ou fazer a paz, de celebrar tratados e alianças) e de “prerrogativa” ou
de “realização do interesse público sem uma regra” (power of doing public good without
a rule) para situações excepcionais e de emergência. As três últimas funções deveriam
ser atribuídas a uma só pessoa – ao pincípe LOCKE. Two Treatises of Government, p. 163
et seq.; 183 et seq.; p. 197.
6Cf. VERDÚ. Curso de Derecho Político, II, p. 134-135.
7O equilíbrio do poder depende de órgãos constitucionais separados, mas havendo con-
trole de uns sobre os outros. BOLINGBROKE. The Craftsman, VII, p. 85 et seq. No geral,
sobre as bases inglesas de divisão de funções estatais executivas e legislativas, enten-
didas aquelas como poder dos tribunais e de polícia: GWIN. The Meaning of Separation
of Powers, p. 8 et seq.; 26 et seq., 75; VILE. Constitutionalism and Separation of Powers,
p. 28, 37 et seq.; sob a perspectiva francesa: TROPER. La Séparation des Pouvoirs et
l’Histoire Constitutionelle Française, p. 15 et seq., 109, 124; sobre uma visão histórica
dos diversos contributos: PIÇARRA. A Separação dos Poderes como Doutrina e Prin-
cípio Constituticional, p. 11 et seq.
8PIÇARRA. A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constituticonal,
p. 18, n. 14.
9GWYN. The Meaning of Separation of Powers, p. 9. Na Inglaterra, o poder judiciário já
se distinguia do poder governamental ou real, ainda que o seu reconhecimento definiti-
vo só se tenha dado com o Ato de Estabelecimento de 1701. Bracton, escrevendo no
século XIII distinguia o gubernaculum do Rei, inquestionável e absoluto, ao lado da
jurisdictio, a administração da justiça que, embora fosse delegação real, impunha aos
juízes a determinação dos direitos dos súditos não de acordo com a vontade do monarca,
mas sim, da lei (Selected Passages. Folio n. 55b et seq.). O Common Law, no início do
século XVII, servia de resistências ao absolutismo real, delimitando competências entre
o Parlamento e o Rei, sendo lembrado o “Case of Proclamation”, em que se proibiu o Rei
de exercer competência legislativa em matéria de crimes. A mais, em casos como Dr.
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427
JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E DIVISÃO DOS PODERES
mos, vista como a faculdade de ordenar por si mesmo (faculté de
statuer) e de exercer controles recíprocos ou faculdade de impedir
as determinações adotadas pelos outros poderes (faculté d’empêcher).
10
Claramente, o seu objetivo era o de limitar o absolutismo monárquico:
o legislativo faria as leis e limitaria o campo de atuação do Executi-
vo, restrito já a dar execução às leis adotadas; um Judiciário inde-
pendente estaria apto a conter as tentativas de desvio ou autopro-
gramação do Executivo. Essa contraposição se assentava, ainda
sob inspiração do modelo de “constituição mista”, nas diferentes
forças sociais e políticas existentes. Através da divisão de funções,
assegurava-se a essas diferentes forças, representatividade política.
O princípio, assim, ao equilibrar os poderes institucionalmente, as-
segurava a pacificação social e permitia a gestão do Estado.
Seu significado jurídico-operacional exigia, portanto, que: a) a
competência de um órgão ou poder fosse determinada de acordo
com o conteúdo “material” do ato a ser cumprido (especialização fun-
cional); b) a atribuição da função ao órgão se fizesse conforme a
idoneidade para desenvolvê-la, segundo a sua composição (especia-
lização orgânica); c) cada poder fosse independente do outro, a fim
de garantir uma autonomia real (independência orgânico-funcional);
Bonham, decidido em 1610, Day v. Savadge, de 1614 e R v. Love, de 1653, alguns juízes,
no primeiro, Coke, no segundo, Hobart e Keble, no terceiro, falavam de um “direito
natural” ou “divino” que se impunha aos atos do Parlamento e do Rei, atraindo para o
Judiciário a “mais alta fonte de direito”. O próprio Parlamento inglês fora originado da
Curia Regis, que detinha função jurisdicional, apresentando à lei função meramente
declaratória, segundo o seu reconhecimento pelos tribunais como integrante do Common
Law. A autonomia da lei como fonte de direito só surgirá no século XVII. Sobressaía-se
a característica de constituição mista tradicional, notadamente após o Ato de Suprema-
cia de 1533, em que se atribui ao Parlamento, composto pelo Rei (King-in-Parliament),
pela Câmara dos Lordes (reduto da nobreza) e a Câmara dos Comuns (âmbito do povo),
a função legislativa, ao lado de tribunais atuantes. As disputas, desde então, entre Rei e
Parlamento, entremeadas com a intervenção dos tribunais dão a medida da antecipação
inglesa em relação ao continente em matéria de organização constitucional e a sua dinâ-
mica existencial própria. Ao fim, como sabemos, a soberania do Parlamento se impôs,
seguindo a teoria de Dicey do duplo aspecto dessa soberania: como positive limb: o
Parlamento pode aprovar ou revogar qualquer lei; e como negative limb: nenhuma Corte
pode desafiar a lei do Parlamento. Cf. VILE. Constitutionalism and Separation of Powers,
p. 24; LOVELAND. Constitutional Law, p. 29 et seq., 31; McILWAIN. Constitucionalismo
Antiguo y Moderno, p. 91 et seq.
10 MONTESQUIEU. De l’Esprit des Lois: Défense de l’Esprit des Lois, I, p. 169 et seq.; 174.
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