Jurisdição constitucional e federação

AutorJosé Adércio Leite Sampaio
Ocupação do AutorMestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Professor do Curso de Graduação e Pós-Graduação da PUC-MG. Procurador da República
Páginas563-667
C
APÍTULO
II
JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL
E FEDERAÇÃO
Comumente, o Estado federal é identificado como uma enge-
nharia político-constitucional que resume os esforços de um certo
número de entidades políticas, destinados a criar instrumentos ou
mecanismos para adoção de políticas comuns e tomadas de deci-
sões que afetem, como um todo, a nova comunidade formada pelo
pacto federal.
1
Sob um ângulo mais formal, o federalismo é visto
como um método de divisão de poderes governamentais, por meio
do qual a um governo central e aos governos regionais seja asse-
gurada uma esfera coordenada e independente de competência e atua-
ção.
2
Fixa-se, assim, um elemento distintivo entre as formas de Es-
tado. Nas formas unitárias, os governos regionais se acham subor-
dinados ao governo central, enquanto nas confederações, dá-se o
inverso: é o governo central que está subordinado aos governos
regionais. Já nas federações, há coordenação e não subordinação.
3
Alguns autores falam, contudo, da existência de relação de “supra
e subordenação” das entidades parcelares em relação à União ou à
1ORBAN. La Dynamique de la Centralisation dans l’État Fédéral, p. 48.
2WHEARE. Federal Government, p. 11.
3WATTS. New Federations and the Commonwealth, p. 93 et seq.
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564 A CONSTITUIÇÃO REINVENTADA
entidade central. Assim, o poder de autoconstituição estadual está
delimitado e condicionado pela Constituição Federal; o direito fede-
ral tem relativa primazia sobre o direito estadual; as contendas en-
tre os Estados ou entre eles e a União são submetidas a um Tribu-
nal Federal, que decide de forma soberana e definitiva; e, enfim, é
irrecusável a existência de uma espécie de “vigilância federal” so-
bre os Estados-membros de forma a obrigá-los a cumprir a Consti-
tuição e as leis federais.
4
A jurisprudência Constitucional tem exercido um significativo
papel na definição dos esquemas constitucionais de organização
territorial dos poderes, com especial destaque para a Federação.
5
Certamente que a leitura direta dos textos constitucionais de muitos
países não será suficiente para que se possa captar o funcionamen-
to das estruturas federativas, nem fazer a opção por enquadrá-los
em algum critério classificatório que se adote. Embora delongado,
esse tópico ficaria incompleto se não (I) discutíssemos a legitimidade
de os tribunais da jurisdição constitucional definirem o perfil da fe-
deração e sem que sistematizássemos os posicionamentos de alguns
Tribunais em relação (II) ao poder constituinte decorrente; (III) à
repartição de competências e, destacadamente no Brasil, (IV) à
autonomia estadual e (V) à autonomia municipal.
SEÇÃO I
LEGITIMIDADE DE O JUDICIÁRIO
INTERFERIR NA DEFINIÇÃO DO PERFIL
DO FEDERALISMO
Que seja uma tendência geral, tanto nos países que adotam a
forma federativa, quanto naqueles que descentralizaram seu Esta-
do, ainda que tenha permanecido unitário, de atribuir-se a um Tri-
bunal a solução dos possíveis conflitos que possam surgir entre as
diversas entidades estatais, não cabe qualquer discussão. Que a
Constituição, via de regra, em riqueza maior de detalhes, como no
4GARCÍA-PELAYO. Derecho Constitucional Comparado, p. 237 et seq.
5FROMONT. La Justice Constitutionnelle dans le Monde, p. 110 et seq.
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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E FEDERAÇÃO
caso brasileiro, ou de forma sucinta e até ambígua, como no siste-
ma norte-americano, reconheça no Judiciário seu principal guardião,
também não parece haver dúvida. O que não goza de tamanho
consenso é o alcance dessa atividade judicial.
Há dois argumentos que se somam para exigir uma certa restrição
dos juízes: um, de natureza liberal; outro de cunho democrático.
Para o primeiro, o federalismo não poderia estar sob a batuta de
um poder sem característica essencialmente política. É que, antes
de jurídico, o federalismo seria de apelo político e, antes que um
requinte teórico, seria uma prática cotidiana entre os diversos ato-
res envolvidos: governos estaduais, distrital, municipais e federal; Câmara
de Vereadores, D istrital, Assembléias Legislativas e Congresso Nacional;
agentes políticos, enfim, que se valeriam dos instrumentos do siste-
ma político para interferir no suposto equilíbrio entre eles. Nesses
domínios seriam completamente inadequados os métodos e parâmetros
judiciais. Os esforços da Suprema Corte norte-americana, nesse
sentido, são bastante sintomáticos. Diversos foram os critérios que
passaram a desenvolver para fundamentar suas posições contra ou
a favor do Governo Federal, todos orientados, deliberadamente ou não,
para identificação de uma base racional da atuação do Congresso
ou do Estado. Mas esses esforços, do ponto de vista do espectador
alheio ao processo, revelaram-se vãos pois não conseguiram en-
quadrar, no “realm of reason”, a discricionariedade judicial na ava-
liação de outra discricionariedade: a do Congresso. Isso não passou
despercebido ao Juiz Souter, no voto dissidente que proferiu no
caso United States v. Lopez, avaliando a mudança de postura da
Corte a partir do New Deal: “sob [a cláusula do] comércio, como
sob a do devido processo, a adoção de uma revisão [fundada num
critério] de base racional (rational basis review) expressava o re-
conhecimento de que a Corte não tinha base sustentável para anali-
sar regulamentações de matérias econômicas, nem para seus julga-
mentos da política judicial (judicial policy judgment)”.
6
Sob o ân-
gulo da teoria da argumentação jurídica, menos formalista, tais es-
forços são louváveis, pois apresentam – ou tentam apresentar – os
elementos que formaram a convicção dos juízes, mas terminam,
por outro lado, por revelar, em função de seus casuísmos e das
inconsistências discursivas, o papel de mero instrumento de justifi-
cação posterior de decisões tomadas sob outros fundamentos, nem
6ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte. 514 U.S. 549 (1995).
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