A lei e sua exceção: o caso dos bairros pericentrais autoproduzidos de Maputo / The law and its exception: the case of the self-produced pericentral districts of Maputo

AutorSilvia Jorge
CargoDoutoranda em Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Membro do Grupo de Estudos Sócio-Territoriais Urbanos e Ação Local (Gestual-CIAUD/FA-UL). E-mail: aivlisjorge@gmail.com
Páginas1543-1583
Revista de Direito da Cidade vol. 08, nº 4. ISSN 2317-7721
DOI: 10.12957/rdc.2016.26032
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Revista de Direito da Cidade, vol. 08, nº 4. ISSN 2317-7721 pp. 1543- 1583 1543
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No atual contexto neoliberal, a renovação de espaços pericentrais autoproduzidos, assente na
tábula rasa do tecido existente e na periferização dos grupos de menores recursos, representa
uma das principais estratégias de intervenção ditadas pela mercantilização e financeirização do
espaço urbano em curso na África Austral. Num estreito diálogo entre a teoria e a prática,
pretendemos contribuir para o conhecimento das formas e processos de produção e
transformação destes espaços, à luz da legislação urbana vigente, tomando como caso de estudo, a
nível macro, a cidade de Maputo e, a nível micro, os bairros de Maxaquene A e Polana Caniço A,
paradigmáticos pela intensidade das transformações de que têm sido alvo. Questionamos a ideia
de segurança de ocupação tantas vezes associada ao contexto moçambicano, enumerando as
várias contradições e ambiguidades que encerram o atual quadro legal, sobretudo quando estão
em causa espaços estratégicos do ponto de vista de mercado, ocupados por grupos de menores
recursos.
-Maputo, bairros pericentrais autoproduzidos, legislação urbana, contexto
neoliberal, (in)segurança de ocupação.
In the current neoliberal context, the renewal of pericentral self-produced spaces, based on the
tabula rasa of the existing urban tissue and on the peripheralisation of groups with less resources,
represents one of the main intervention strategies driven by the ongoing commodification and
financialisation of urban spaces in Southern Africa. In a close dialogue between theory and
practice, we aim to contribute to the knowledge of forms and processes of production and
transformation of these spaces, in the light of the current urban legislation, taking as a case study,
at a macro level, the city of Maputo and, at a micro level, the neighbourhoods of Maxaquene A and
Polana Caniço A, which are paradigmatic due to the intense transformation that has been taking
place. We question the idea of land occupation security, so often associated with the Mozambican
context, enumerating the various contradictions and ambiguities that enclose the current legal
framework, particularly when concerning strategic spaces from the point of view of the market,
occupied by groups with less resources.
Maputo, pericentral self-produced neighbourhoods, urban legislation, neoliberal
context, occupation (in)security.
1 Doutoranda em Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Membro do Grupo de
Estudos Sócio-Territoriais Urbanos e Ação Local (Gestual-CIAUD/FA-UL). E-mail: aivlisjorge@gmail.com
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Assistimos, em várias cidades do mundo, ao impacte da expansão e consolidação do
modelo neoliberal, a que alguns autores, como Rolnik (2015: 15), se referem como uma
colonização da terra urbana e da habitação pelas finanças globais. Mais do que mercadorias, a
terra e a habitação revelam-se importantes ativos financeiros, jogados no mercado global, para o
qual deixam de existir fronteiras ou limites de ação (Harvey, 2014). Seguindo a linguagem
contratual das finanças e da economia, o território é reduzido ao seu valor de troca e à perspetiva
de futuras mais-valias, servindo as relações de posse e propriedade cada vez mais para definir ou
bloquear – direitos, como o direito ao lugar ou, de uma forma geral, o direito à cidade.
Adoptado por governos ou imposto como condição para a concessão de empréstimos por
parte de agências financeiras internacionais, como o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário
Internacional (FMI), este novo paradigma disseminou-se rapidamente nas últimas décadas,
moldando-se às especificidades locais de cada contexto histórico-geográfico (Brenner e Theodore,
2005). No caso de Moçambique, e de grande parte dos países da África Austral, a submissão a
programas de ajustamento estrutural na segunda metade da década de 1980, sob pressão do BM e
do FMI, marca o início desta viragem. Para este grupo de países, a prioridade a nível urbano e
habitacional, ditada pelas agências internacionais, passou pela reforma dos sistemas de posse da
terra, nomeadamente dos instrumentos jurídicos que regulam o seu uso, planeamento e gestão,
bem como pelo investimento em infraestruturas e na indústria da construção civil. Face a esta
viragem, extensas áreas foram e continuam a ser demolidas em função de grandes projetos de
infraestruturas e renovação urbana ou de projetos de exploração económica, como os que tiveram
lugar em Moatize, no Norte de Moçambique, para extração de carvão (ver, p. ex., Cernea, 2007;
HIC-HLRN, 2012). Qualquer destas ações sobre espaços habitados, revela-se particularmente
violenta quando ocorre em territórios cuja situação de posse se encontra indefinida ou lida à luz
dos novos instrumentos jurídico-urbanísticos como ilegal ou irregular. Mais facilmente tomados
pelos governos locais ou agentes privados, estes espaços, grande parte deles autoproduzidos,
representam um vasto território de reser va à espera do “momento certo” (Rolnik, 2015: 174).
Os instrumentos jurídico-urbanísticos vigentes tendem assim a assumir forte influência nas
(im)possibilidades de acesso à terra e à habitação por parte dos grupos de menores recursos,
principalmente quando sujeitos à pressão do mercado e ameaçados por ações de renovação e
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gentrificação.2 É precisamente sobre a legislação urbana que nos detemos neste artigo, no quadro
do atual contexto neoliberal e à luz dos bairros pericentrais autoproduzidos de Maputo,
nomeadamente dos de Maxaquene A e Polana Caniço A (ver figura 01), objeto: de processos de
valorização mercantil; de processos paul atinos de renovação, em resultado do mercado paralelo de
compra e venda de talhões e construções; de projetos de (re)construção de infraestruturas viárias;
e de planos de ordenamento. Num estreito diálogo entre a teoria e a prática, bem como entre a
macro e a mico escalas, esta leitura da legislação urbana vigente segue uma abordagem qualitativa,
apoiando-se nas quatro dimensões apresentadas por Fernandes (2008: 22-23): (1) na qualidade do
processo de produção da lei, entrando na discussão entre legalidade e legitimidade e superando o
“positivismo jurídico” que orienta o pensamento doutrinário hegemónico; (2) na dimensão da lei
ela mesma, ou seja, na forma como os vários instrumentos jurídicos se articulam ou contradizem,
entendendo a lei como um produto inacabado, passível de conflitos de interpretação, contradições
e revisões; (3) no cumprimento da lei e dos direitos nela consagrados, nas possibilidades e
obstáctulos à sua materialização, tendo em conta a relação de forças entre os interesses e práticas
dominantes e os dos moradores dos bairros pericentrais em análise; e (4) no papel da lei e da
ilegalidade na produção e transformação destes espaços, estabelecendo possíveis combinações
entre o sistema instituído, a legislação e o mercado fundiário e imobiliário. Acrescentamos ainda
uma quinta dimensão, a da percepção dos direitos e deveres inscritos na lei, trazida dos discursos
dos vários entrevistados3 e nvolvidos nestes processos (técnicos, políticos, académicos, investidores
e intermediários, representantes de agências internacionais, consultoria e avaliação imobiliária,
associações e organizações não-governamentais, estruturas locais e moradores), no sentido de
perceber de que forma influencia, ou não, a condução dos processos de intervenção e a
transformação do espaço.
Face às atuais dinâmicas e tendências de intervenção esboçadas para os bairros
pericentrais autoproduzidos de Maputo, avançamos com uma leitura cruzada da legislação urbana
2 Embora a noção de gentrificação surja inicialmente associada à (re)valorização, recomposição e
substituição social apenas dos centros urbanos (ver, p. ex., Smith, 1987, 1996), alguns autores referem a
necessidade de ampliar e generalizar esta noção a outros territórios e contextos, de forma a melhor
entender as diferentes faces da “elitização” das cidades (ver, p. ex., Clark, 2005; Rérat [et al.], 2008).
Adotamos assim a noção de gentrificação na sua acepção mais alargada, entendendo-a como um processo
que envolve uma substituição dos moradores originais por outros de maiores recursos, bem como uma
mudança do espaço construído através do reinvestimento em capital fixo.
3 Grande parte do trabalho de campo realizou-se entre os meses de setembro a dezembro de 2013, no
âmbito da tese de doutoramento desenvolvida na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, sob
coorientação da Professora Doutora Isabel Raposo, sobre a produção e transformação dos bairros
pericentrais autoproduzidos de Maputo no atual contexto neoliberal.

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