A Liminar

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas231-246

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1. Natureza jurídica

A busca de uma definição quanto à natureza jurídica da liminar concedida em ação de segurança tem provocado intensa polêmica doutrinal. Consideram-na cautelar, dentre outros, Alcides de Mendonça Lima159, Othon Sldou160, Celso Agrícola Barbi161, Alfredo Buzaid162 e Milton Flaks163.

Diz Celso Agrícola Barbi: “Ordenando a suspensão, terá o juiz antecipado, em caráter ‘provisório’, a providência que caberia à sentença final, e isso para ‘evitar o dano’ que decorreria da natural demora na instrução do processo. Ora, toda medida provisória, que tenha por fim evitar danos possíveis com a demora natural do processo, tem a substância de medida cautelar (...). Afigura-se-nos, portanto, incontestável que a suspensão liminar no processo de mandado de segurança seja uma providência ou ‘medida cautelar’. A circunstância de não ser objeto de um processo especial para sua discussão, como é comum nas ações dessa natureza — a ponto de Chiovenda colocar a ação cautelar ao lado da ação de cognição e da ação de execução, numa tríplice classificação das ações —, não influi na natureza da decisão que julga o pedido de suspensão liminar, porquanto, como nota com acuidade Carneluttl, existe aí antes uma ‘fase cautelar do processo’, do que um processo cautelar164.

A natureza acautelatória dessa liminar, entretanto, não é reconhecida por Humberto Theodoro Júnior165, Lopes da Costa166, Hamílton de Moraes e Barros167 e Pestana de Aguiar Silva168.

Argumenta, por todos, Hamílton de Moraes e Barros: a liminar “é a entrega provisória e antecipada do pedido; já é a decisão satisfativa do direito, embora precária. Conjura os perigos

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da demora, porém se assenta na mesma fundamentação que irá embasar a sentença definitiva. Não é possível a liminar concedida a quem evidentemente não tenha o direito de base”.169

Venia permissa, a liminar deferida em ação de segurança não implica, como supõe o eminente jurista mencionado, entrega antecipada da prestação jurisdicional de fundo. O que na verdade se assegura, com a outorga dessa liminar, não é a satisfação das pretensões deduzidas em juízo (= direito material) e sim a própria prestação jurisdicional. Nesse sentido, não se pode deixar de reconhecer o caráter cautelar dessa providência, ainda que emitida sem que haja um processo cautelar.

Ainda que essa liminar traduzisse, efetivamente, uma antecipação da tutela jurisdicional de mérito — o que se admite apenas para argumentar — isso não significaria negar-lhe o traço cautelar a que referimos, pois é necessário lembrar que há determinadas providências acauteladoras, concedidas in limine, que representam uma espécie de antecipação dos efeitos da sentença de fundo. Basta citar o exemplo da liminar que é concedida nas ações de alimentos (Lei n. 5.478, de 25 de julho de 1968, art. 4.º, caput) e que, nem por isso, deixa de possuir natureza cautelar. Essa fixação de alimentos provisórios representa o exercício de uma tutela cautelar antecipatória, sem que a sua emissão deva ser interpretada como prejulgamento do mérito da ação.

O próprio processo do trabalho conhece medidas cautelares inominadas requeridas com o objetivo de promover a tutela do direito material (reintegração de empregado estável, pagamento de salários retidos, etc.); estas, quando concedidas, correspondem a uma antecipação do provimento jurisdicional de mérito (processo de conhecimento), sem que essa nota peculiar lhes subtraia a essência cautelar de que se fazem providas. Mencionem-se, ainda, as liminares a que se referem os incisos IX e X, do art. 659, da CLT: possuem natureza cautelar, ainda que concedidas em processo de conhecimento.

A liminar deferida em ação de segurança possui, pois, natureza cautelar, ainda que — como afirmamos — não haja aí um processo cautelar. Ela não tende, como pensam alguns estudiosos, à antecipação dos efeitos inerentes à sentença de mérito, ou seja, não visa a satisfazer o direito subjetivo material do impetrante, e sim a assegurar a própria prestação da tutela jurisdicional

O CPC de 2015 alterou o sistema do CPC de 1973, quanto ao que denominávamos de tutelas de urgência, das quais as medidas cautelares inominadas faziam parte. O Código atual passou a aludir às tutelas provisórias, que compreendem as de urgência e as da evidência. As tutelas de urgência encontram-se disciplinadas nos arts. 300 a 310; as da evidência, no art. 312. O poder geral de cautela está previsto nos arts. 300 e 301.

No procedimento das tutelas de urgência, a providência concedida constitui a finalidade desse procedimento, ao passo que na ação de segurança a liminar não é um fim em si mesma, senão que um instrumento ou meio utilizado para garantir a plena realização do escopo do processo.

A despeito de tratar-se de cautelar, a liminar característica da ação de segurança não se subordina aos princípios gerais estabelecidos pelo CPC. Assim, por exemplo, a nosso

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ver, não se aplica o art. 300, § 1.º, que exige a prestação de caução real ou fidejussória para a concessão da medida, destinada a “ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer” — conquanto a mencionada norma legal dispense da caução a parte economicamente hipossuficiente, que não a possa prestar.

Não ignoramos o fato de art. 7.º, inciso III, da Lei n. 12.016/2009, facultar ao juiz exigir do impetrante a prestação de caução, fiança ou depósito, para assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica. Conforme dissemos em linhas pretéritas, deste livro, essa disposição da Lei n. 12.016/2009 possui fortes traços de inconstitucionalidades, por embaraçar o exercício do direito de ação, previsto na Constituição da República (art. 5.º, inciso XXXV).

Os que sustentam não ter, a liminar concedida em ação de mandado de segurança, natureza acautelatória, representando, isto sim, uma antecipação da prestação jurisdicional de fundo, por certo haverão de colocar-se em dificuldade para explicar a possibilidade de o juiz, ao proferir a sentença, negar o mandado de segurança por entender inexistente o direito líquido e certo alegado pelo impetrante. Nesta hipótese, a liminar teria correspondido ao prévio reconhecimento de um direito que a sentença declarou não existir... Como essa liminar tem índole cautelar, o núcleo de sua tutela não é, em rigor, o direito material invocado pelo impetrante, mas a eficácia plena da sentença, ou seja, do resultado do julgamento.

Logo, o juiz, ao conceder liminar, não se pronuncia sobre o mérito da ação, não precipita os efeitos próprios do provimento de mérito, motivo por que, ao lançar a sentença nos autos, não estará obrigado a decidir em consonância com as razões que o levaram a outorgar, in limine, a providência. A concessão desta atendeu à necessidade de serem afastados os riscos de lesão do direito subjetivo do impetrante, decorrentes de ato ilegal ou abusivo de poder da autoridade apontada como coatora, ou de reparar a lesão sofrida. A investigação efetiva acerca da existência desse direito, e dos seus atributos de liquidez e certeza, será realizada pela sentença (ou pelo acórdão), sem que haja inevitável influência da liminar na sentença.

Perseverando: a liminar tem como alvo, apenas, a eficácia do ato da autoridade pública; já a sentença (ou o acórdão) se ocupa da existência do próprio ato impugnado. Isso corresponde a afirmar, por outros termos, que a liminar unicamente suspende, de maneira provisória e precária, a eficácia do ato, neutralizando os seus efeitos jurídicos, ao passo que a sentença provoca uma cassação definitiva do ato praticado pela autoridade. É relevante, portanto, essa observação, na medida em que contribui, decisivamente, para delimitar os objetos da liminar e da sentença emitidas nas ações de segurança. Por ela se constata que a liminar não traduz um prejulgamento da ação, uma antecipação da tutela jurisdicional de fundo, mas mera providência destinada a assegurar o resultado útil do processo.

Castro Nunes entende que a suspensão liminar supôe, sempre, ato comissivo da autoridade170; conquanto o vocábulo comissivo não se encontre dicionarizado (trata-se, pois, de neologismo jurídico), por ele se procura exprimir a ideia de um ato positivo,

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concreto, materialmente constatável, enfim, de um agir, de uma faceta da autoridade pública. Dentro dessa mesma linha de conceitos, o ato dito omissivo é o não ato, a ausência do ato que deveria ser praticado: configura, portanto, uma omissão da autoridade.

Como afirmamos há pouco, o ilustre Castro Nunes é de opinião que somente o ato comissivo pode ser destinatário do pedido de suspensão liminar; sendo o caso de ato omissivo “não há como cogitar de suspensão, porque o objeto do writ será então forçar a autoridade a praticar o ato171.

Não partilhamos esse parecer.

Parece-nos que o festejado jurista teria chegado a tal inferência em virtude de uma interpretação excessivamente literal do art. 7.º, inciso II, da Lei n. 1.533/51 (em vigor na época), segundo o qual o juiz, ao despachar a inicial, determinaria que se suspendesse o ato que dera motivo ao pedido (inciso II). Ora, se assim efetivamente devesse ser enten-dido, haveríamos de admitir que muitos direitos subjetivos, líquidos e certos, ficariam desapercebidos de proteção jurisdicional, o que corresponderia à possibilidade de serem violados pela omissão da autoridade pública. O inciso III, do art. 7.º, da Lei n. 12.016/2009 contém regra semelhante.

Se a norma legal permite o ajuizamento da ação de segurança para combater um comportamento omissivo do Poder Público, não há razão lógica, nem jurídica, para...

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