Linguagem (não) estigmatizante em julgados no Judiciário Brasileiro/(Non) stigmatizing language in the judgments of the Brazilian Judiciary.

AutorFreitas Alves, Felipe Laurêncio de
  1. Introdução

    A fraternidade designa o laço necessário de indivÃÂduos para a construção de uma sociedade igualitária, pautada no respeito às pluralidades e àdemodiversidade. Fundamenta-se na perspectiva de que todos os participantes da sociedade merecem igual proteção de direitos, de condições de acesso a esses direitos e de tratamento isonômico pelas instituições, sem rótulos, estigmas e mitigação de sua dignidade.

    Em sociedades como a brasileira, formalmente marcadas por processos de constitucionalização da cidadania, são as desigualdades exaltadas como via de justificação de exclusões e favorecimento de determinados sujeitos em detrimento de outros. Nesse panorama, a linguagem jurÃÂdica antidiscriminação precisa ter papel de destaque na luta contra as injustiças, na afirmação de direitos e na instrumentalização da igualdade material preconizada pela Constituição da República, respeitando a pessoa, independente da sua origem, raça, classe, escolaridade, orientação sexual, gênero, vÃÂnculos e outros marcadores da diferença.

    Com a palavra estigma, referimo-nos a um atributo depreciativo que se atribui aos sujeitos que fogem de um padrão social definido como normalidade. No caso do Direito, esse padrão estaria representado pelo perfil do jurisdicionado que geralmente tem acesso aos órgãos do Sistema de Justiça, ou seja, pelo homem branco, heterossexual, sem deficiência fÃÂsica ou mental e possuidor de bens. A linguagem estigmatizante é tida, então, como a linguagem capaz de imprimir um estigma a qualquer sujeito que seja diferente daquele, delimitando também a imagem que ele terá de si mesmo como normal (normal, pois oposto ao sujeito estigmatizado).

    Adotaremos em nossas análises a noção de estigma emprestada por Goffman (2008, p. 14), que a divide em três tipos: a) as abominações do corpo, que são as deformidades fÃÂsicas; b) as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões não naturais, crenças falsas, sendo essas inferidas geralmente nos distúrbios mentais, na prisão, nos vÃÂcios, na homossexualidade, na pobreza; e c) os estigmas raciais, nacionais ou religiosos, que são transmitidos a partir dos preconceitos relacionados a grupos minoritários.

    Tendo esses pontos como balizas, objetiva-se analisar eventual linguagem estigmatizante em julgados do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a fim de verificar se os grupos vulneráveis (pobres, marginalizados, negros, pessoas com deficiência, homossexuais, dependentes quÃÂmicos, e outros) são tratados com respeito por essas Cortes, eleitos como órgãos representativos dos demais tribunais do paÃÂs ou são destituÃÂdos de suas subjetividades e aniquilados em suas particularidades. O problema de pesquisa: a linguagem no trato judiciário encontra-se em conformidade com a Constituição e compromete-se com a efetivação do direito ao respeito no contexto de afirmação da pessoa humana no Estado Democrático de Direito Brasileiro pós-1988? A hipótese é que a linguagem usada pelo Poder Judiciário reproduz, em alguma medida, os diversos processos de exclusão que marcam a história da sociedade brasileira no que toca àafirmação de direitos de grupos vulneráveis.

    Para isso, fez-se uso de pesquisa exploratória, abordagem quali-quantitativa, tendo como técnica de pesquisa apurada a documental, a partir do uso do buscador eletrônico de jurisprudência do STF e do STJ, tendo como marco temporal julgados do perÃÂodo entre outubro de 1988 (entrada em vigor da nova ordem constitucional) e julho de 2020 (mês da pesquisa), para uma análise aprofundada da relevância da linguagem utilizada pelo juiz e do uso dela como instrumento de dizer o Direito, protegendo a pessoa em suas múltiplas dimensões e/ou oprimir sujeitos. Ademais, fez uso de técnicas de pesquisa bibliográfica e análise de conteúdo dos dados sistematizados.

    A fugir um pouco das discussões levantadas pelos teóricos do labeling approach e da criminologia crÃÂtica, que partem a estudar a questão da seletividade penal e, de certo modo, permeiam a discussão da estigmatização de grupos vulneráveis, focaremos nossos esforços em um objeto de estudo muito mais restrito que este e ainda não explorado, tendo em vista que não encontramos qualquer livro ou artigo cientÃÂfico que tratasse especificamente da estigmatização de sujeitos por meio da linguagem utilizada pelo juiz em processos judiciais.

    O plano de investigação será dividido em quatro seções. A primeira faz análise do discurso jurÃÂdico e suas entrelinhas; na sequência, o objeto de estudo--a linguagem do juiz--no campo dos desafios impostos pela modernidade ao desenvolvimento de uma sociedade fraterna; em seguida, teceremos breves comentários acerca da nomeação dos sujeitos estigmatizados no Direito; e, por último, faremos a análise de julgados, representativos para o objetivo delineado. Por fim, sem intuito de esgotar o tema, considerações finais sobre a investigação e o contributo para essa necessária abertura da pauta.

  2. A linguagem jurÃÂdica e o discurso por trás do dito

    Analisar a linguagem jurÃÂdica implica, também, perceber o que não está escrito nela ou revelado. Isto porque o idioma do sujeito que fala (do juiz, por exemplo) é sua própria condição de possibilidade, e não simplesmente um instrumento de expressão, o que significa que a existência do sujeito falante está envolvida em um idioma que o antecede e o excede (BUTLER, 1997, p. 54). Por isso, a análise do pensamento do sujeito falante quando escreve é sempre alegórica em relação ao discurso que ele utiliza (FOUCAULT, 2008, p. 31), exigindo um mergulho mais profundo nas letras e nos discursos escolhidos.

    Para centralizar aqui o objeto de estudo, que será emprestado da linguagem escrita do julgador em seu ofÃÂcio, adota-se o conceito de linguagem de Habermas (1989, p. 166), para quem o agir comunicativo é compreendido como um processo circular no qual o ator (o sujeito que pretende se comunicar) é, ao mesmo tempo, o iniciador, que domina as situações por meio de ações imputáveis, e o produto das tradições nas quais se encontra, dos grupos aos quais pertence e dos processos de socialização nos quais se insere.

    Por isso, uma análise linguÃÂstica, como a que pretendemos aqui fazer, precisa ser conduzida atentamente, de maneira a observar o sujeito comunicativo inserido em seu meio e a partir das possibilidades que lhe sejam dadas. Utilizando-se dos ensinamentos de Gadamer (1999, p. 559-560), para compreender o que alguém diz (ou escreve) é necessário pôr-se de acordo sobre a coisa, pois a linguagem é o meio em que se realiza o acordo dos interlocutores e o entendimento sobre a coisa.

    Pretendemos também fixar nosso estudo no campo das lutas simbólicas pela imposição oficial dos sentidos. Bourdieu (1989, p. 11) explica que os sujeitos estão envolvidos numa luta simbólica para imporem uma definição de mundo o quanto mais aproximada possÃÂvel aos seus interesses--o que pode encontrar eco na utilização da linguagem jurÃÂdica como meio de normatizar, tornar o mundo social adstrito a determinada decisão feita por quem tem como ofÃÂcio decidir.

    Não podemos esquecer que essa luta simbólica, quando travada por um mandatário do Estado, como é o caso do juiz, implica uma relação de dominação ainda maior, porque este sujeito possui algo que Weber (2015, p. 63-64) chama de legitimidade, a crença na validade da disposição para a obediência no cumprimento de deveres instituÃÂdos; neste caso, pelo conjunto normativo estatal que legitimou a função de decidir do juiz.

    Os dominados, nesse sistema de organização, portanto, não têm outra escolha a não ser a da aceitação da definição legÃÂtima da sua identidade ou da busca da assimilação, por meio de estratégias de dissimulação que façam desaparecer todos os sinais destinados a lembrar o seu estigma, a fim de produzir a imagem de si a menos afastada possÃÂvel dessa identidade, dada por quem tem o poder legitimador (BOURDIEU, 1989, p. 124-125).

    Esse aporte será importante para o nosso estudo, apesar de destoar um pouco da matriz foucaultiana de entendimentos na qual buscamos nos inspirar, porque Bourdieu, em certa medida, explica com mais detalhes os processos de legitimação da atividade dos agentes a partir do valor relacional de suas posições, o que enriquece a discussão levada a cabo por Foucault de produção de verdades centrada nos discursos produzidos pelas instituições polÃÂticas.

    Diz-nos Foucault (2005, p. 29) que somos forçados a produzir uma dada verdade pelo poder que a exige e que precisa dela para funcionar. O poder, então, institucionaliza a busca da verdade e a profissionaliza: é o discurso verdadeiro (ou legÃÂtimo) que decide, veicula, julga, condena, classifica, obriga a tarefas e prescreve uma certa maneira de viver em função de discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos especÃÂficos de poder (FOUCAULT, 2005, p. 29).

    Tudo, claro, depende de quem fala e institucionaliza essa fala por meio de decisões judiciais, no caso do juiz. Foucault (2008, p. 56-57) nos ensina que o status do médico, que podemos usar como exemplo para tirar proveito para o nosso estudo acerca da linguagem, compreende critérios de competência e de saber: instituições, sistemas, normas, condições legais que dão direito àprática e ÃÂ...

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