Litigância climática no sul do Brasil: o caso da Usina Termelétrica Nova Seival/Climate litigation in southern Brazil: the case of the Nova Seival Thermoelectric Power Plant.

AutorMaldonado, E. Emiliano

Introdução

O presente artigo tem como objetivo apresentar um estudo de caso sobre o licenciamento ambiental da Usina Termelétrica (UTE) Nova Seival que, ao lado da Mina GuaÃÂba e da criação do polo carboquÃÂmico, se constitui como um dos três conflitos socioambientais paradigmáticos, vinculados àexploração de carvão mineral, que estão ocorrendo no Rio Grande do Sul nos últimos anos. Após inúmeras violações de direitos, que originaram uma intensa mobilização social da sociedade civil organizada, e pelas diversas irregularidades nos seus processos de licenciamento ambiental, esses conflitos tornaram-se casos judiciais que expressam exemplos brasileiros do que tem sido denominado pela literatura especializada de litigância climática estratégica (SETZER et. al, 2019), nos quais os autores atuam como assessores jurÃÂdicos populares junto com demais advogados das entidades socioambientalistas que ajuizaram a Ação Civil Pública ora analisada e que compõem o Comitê de Combate àMegamineração no RS (CCM/RS).

Assim, a partir do estudo desse caso paradigmático, refletiremos sobre questões fundamentais para o aprimoramento dos direitos socioambientais, uma vez que essa experiência sintetiza a importância da mobilização comunitária e da litigância estratégica para os processos de resistência dos territórios atingidos pelos projetos de megamineração de carvão no RS. Ainda, apresentaremos os principais direitos violados pela forma como estava sendo realizado o licenciamento ambiental e demonstraremos como este caso produziu importantes avanços na jurisprudência sobre essa temática. Nesse aspecto, o presente artigo conjuga a sistematização de reflexões e estudos deste caso que temos assessorado juridicamente enquanto membras/os da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), e assessoras/es jurÃÂdicas/os do Instituto Preservar, atuando a partir de seus projetos socioambientais, e sobre os quais temos divulgado conquistas e desafios em algumas publicações recentes (MALDONADO, 2022; MALDONADO; CAFRUNE; DERMMAM, 2022; MALDONADO; FERNANDES MASO; GALEB, 2022).

Além disso, o caso analisado dialoga diretamente com a proposta temática do dossiê: "Direitos da Natureza, Extrativismos e Litigância Climática", uma vez que expõe as experiências decorrentes das articulações realizadas pela RENAP/RS, pelo Instituto Preservar e pelas demais entidades do CCM/RS, na construção de espaços de interlocução entre os movimentos populares e a academia, especialmente, no interior do campo jurÃÂdico.

Desse modo, recordamos que o presente dossiê é fruto das discussões e reflexões que foram apresentadas no 2 Curso de Verão: Direitos da Natureza, Extrativismos e Litigância Climática, realizado pelo Instituto Preservar em parceria com a FURG e com o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), que desde a sua primeira edição conta com apoio do Instituto Clima e Sociedade (ICS).

  1. Conflitos socioambientais no Rio Grande do Sul: as resistências dos territórios em face dos anacrônicos projetos de megamineração de carvão

    Desde o século XIX, o estado do Rio Grande do Sul (RS) tem sofrido os impactos da exploração mineral de carvão em seu território, sob a direção de interesses de corporações estrangeiras, primeiramente sob investimentos do capital inglês e, na atualidade, pelo interesse de mineradoras chinesas e estadunidenses que almejam explorar as jazidas carbonÃÂferas do sul do Brasil até o limite máximo das suas capacidades. Desse modo, infelizmente, o extrativismo minerário de carvão não parece ser algo do passado, pois nos últimos anos o setor adquiriu uma sobrevida estimulada pelos governos recentes que passaram pelo RS e pela União. Nesse sentido, é importante recordar que o estado do Rio Grande do Sul possui aproximadamente 90% das reservas de carvão do paÃÂs, motivo pelo qual as definições que ocorrem nesse estado da federação assumem um forte destaque e influenciam diretamente os rumos das empresas dedicadas a esse tipo de exploração mineral em todo o Brasil (MALDONADO; CAFRUNE; DERMMAM, 2022).

    Essa influência, também, pode ser verificada se analisarmos as empresas do setor, uma vez que a Companhia de Pesquisas e Lavras Minerais--Copelmi Mineração Ltda--tornou-se a maior mineradora de carvão do paÃÂs, visto que abarca um total de 18% do mercado de carvão do Brasil e domina em torno de 80% do mercado industrial do paÃÂs (COPELMI, 2020). No caso do RS, sua preponderância é evidente, uma vez que essa corporação detém a concessão de bilhões de toneladas de carvão mineral e, no último perÃÂodo, era responsável por cerca de 15% de toda a produção de minérios comercializada no estado, praticamente o dobro da segunda colocada (ANM, 2019).

    Mesmo sem terem sido realizadas as promessas de desenvolvimento propagadas pela mineração de carvão, há mais de 150 anos, na última década, vem ocorrendo uma tentativa de ressuscitar a exploração de carvão no sul do Brasil, com o escopo de salvaguardar os interesses dessas corporações carbonÃÂferas. Trata-se de uma narrativa retórica e propagandÃÂstica que desconsidera completamente a emergência climática, as diversas possibilidades de utilização de outras tecnologias de produção energética na região (ex: potencial eólico e hidroelétrico do RS) e os danos gravÃÂssimos gerados por esse tipo de mineração nas comunidades atingidas, na natureza e na saúde da população da região.

    Nessa linha, surgiram uma série de projetos minerários e termelétricos, dentre os quais, podemos destacar: a) o projeto que visava construir a maior mina de carvão a céu aberto do Brasil--a "Mina GuaÃÂba"--localizada a apenas 15 km de distância da capital gaúcha, em pleno Delta do Jacuàe no coração da região metropolitana de Porto Alegre, cujo processo de licenciamento foi suspenso por decisão judicial (1), em razão da não observância da consulta e do consentimento prévio, livre e informado das comunidades indÃÂgenas Mbyá-Guarani que seriam atingidas pelo projeto minerário; b) a aprovação açodada e inconstitucional da Lei Estadual no. 15.047/17, que cria um Polo CarboquÃÂmico no RS, a qual é objeto da ACP no. 5091523-82.2019.8.21.0001; e c) o projeto de construção da UTE Nova Seival, que pretendia construir a maior usina termelétrica de carvão do RS, na região de Candiota e Hulha Negra.

    Nesse contexto, nos limites deste artigo, abordaremos em profundidade apenas esse último caso da UTE Nova Seival, pois aponta algumas possibilidades de litigância climática estratégica e se configura como uma jurisprudência vanguardista nessa temática, ao estabelecer a necessidade de que o licenciamento ambiental das termelétricas deve contar com uma análise aprofundada dos efeitos climáticos desse tipo de empreendimento, assim como respeitar os ditames da PolÃÂtica Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC) e da PolÃÂtica Gaúcha de Mudanças do Clima (PGMC), como poderemos verificar nos próximos tópicos do presente artigo.

  2. Litigância climática estratégica: o caso da UTE Nova Seival

    O licenciamento ambiental da UTE Nova Seival, nos municÃÂpios de Candiota e Hulha Negra, no interior do Estado do Rio Grande do Sul, foi submetido ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) em 04 de dezembro de 2019. Trata-se do projeto de construção da maior usina termelétrica do Rio Grande do Sul, com potenciais impactos socioambientais, na medida em que o seu funcionamento depende da queima de 525 t/h de carvão, conforme consta no RIMA produzido pelo empreendedor (HAR; TECH, 2020). Isso equivale a 12.600 toneladas por dia de carvão sendo queimadas em pleno contexto de emergência climática, no qual todas as instituições cientÃÂficas do mundo apontam a necessidade de redução drástica da queima de combustÃÂveis fósseis sob pena de pôr em risco a própria sobrevivência humana na Terra (UNEP, 2021).

    Da mesma forma, para viabilizar o processo termelétrico, a UTE Nova Seival necessita consumir 1.595 [m.sup.3]/h de água para realizar suas atividades (HAR; TECH, 2020), ou seja, a termelétrica irá consumir 38.280[m.sup.3] por dia, em uma região em que a escassez de água é um problema recorrente e que pode inviabilizar a continuidade da produção agrÃÂcola da região. Esse aspecto é crucial e demonstra a gravidade dos impactos gerados pela UTE, visto que essa média de consumo hÃÂdrico (38.280[m.sup.3] por dia) equivale ao consumo diário de um municÃÂpio de cerca de 230 mil habitantes; quase 8,5 vezes o consumo diário de água de todo o municÃÂpio de Candiota ou o equivalente ao dobro do consumo diário de água de uma cidade como Bagé, polo referência na região em que se pretende implantar o empreendimento, conforme dados disponibilizados no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (BRASIL, 2021c).

    Usinas termelétricas, como a Nova Seival, são responsáveis pelo aumento do efeito estufa, o que pode afetar o atendimento àContribuicao Nacionalmente Determinada assumida pelo Brasil no Acordo de Paris (UNFCC, 2015), às determinacoes previstas na PolÃÂtica Nacional sobre Mudanca do Clima--PNMC (Lei no. 12.187/09) e na Lei Estadual no. 13.594/10, que criou a PolÃÂtica Gaucha de Mudancas Climáticas (PGMC). Isso acarreta na imprescindibilidade de que o processo de licenciamento ambiental da maior usina termeletrica do...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT