Livro II - Da função jurisdicional

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Ocupação do AutorAdvogado
Páginas59-95
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LIVRO II
DA FUNÇÃO JURISDICIONAL
TÍTULO I
DA JURISDIÇÃO E DA AÇÃO
Art. 16. A jurisdição civil é exercida pelos juízes e pelos tribunais em todo o território
nacional, conforme as disposições deste Código.
• Comentário
A norma, com pequenas alterações na literalida-
de, já constava do art. 1º, do CPC revogado.
A CLT contém disposição análoga: “O proces-
so da Justiça do Trabalho, no que concerne aos
dissídios individuais e coletivos e à aplicação de pe-
nalidades, reger-se-á em todo o território nacional
pelas normas estabelecidas neste Título” (art. 763)
— que trata do “Processo Judiciário do Trabalho”.
Das normas legais supracitadas extraem-se as se-
guintes conclusões objetivas:
a) a jurisdição, como monopólio estatal, carac-
teriza-se por sua unidade, o que signif‌i ca dizer
que esse poder-dever do Estado é uno e indivi-
sível. Não possuímos, no Brasil, todavia, uma
jurisdição constitucional nem uma jurisdição
administrativa, ao contrário do que se verif‌i ca
em alguns países. Por outro lado, conquanto a
Constituição Federal proclame a independência
e a harmonia dos Poderes da União, entre si (art.
2º), há casos em que o Legislativo julga, como
nas situações previstas nos incisos I e II, do art.
52 da mesma Constituição; e o Executivo legisla,
como está previsto nos arts. 62 e 84, VI, também
b) os juízes e os Tribunais do Trabalho exercem
atividade jurisdicional somente no território
brasileiro. Este é o princípio da aderência da
jurisdição ao território.
São características da jurisdição:
a) vinculação ao território;
b) constituir monopólio;
c) pressupor existência de lide;
d) ser secundária;
e) ser instrumental;
f) ser substitutiva;
g) ser provocada;
h) ser irrecusável;
i) ser coercitiva;
j) ser desinteressada;
k) ser declaratória, condenatória, constitutiva,
mandamental, executiva e cautelar.
Não se pode deixar de mencionar, nesta altura,
o princípio do juiz natural, materializado no inciso
XXXVII da Constituição da República, conforme
o qual “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.
Tribunal ou juízo de exceção é o que se institui
para julgar determinado ato ou fato já ocorrido. A
cláusula constitucional do juiz natural representa
a garantia de que alguém somente poderá ser con-
denado por órgão jurisdicional preexistente ao ato
praticado pela pessoa (réu). Proíbe-se, portanto, em
nosso sistema, a criação de órgão destinado ao julga-
mento de questões ex post facto.
Para que a cláusula do juiz natural não f‌i cas-
se gravemente comprometida pelas vicissitudes e
injunções da realidade prática, a Constituição da
República concedeu aos magistrados determinadas
garantias mínimas, indispensáveis ao pleno exercí-
cio das suas funções, como as da vitaliciedade, da
inamovibilidade e da irredutibilidade de vencimen-
tos (art. 95, incisos I a III, respectivamente).
O princípio do juiz natural compreende, portan-
to, os seguintes elementos: a) preconstituição do
órgão jurisdicional; b) competência do órgão; c) in-
dependência e imparcialidade dos juízes.
Juízo natural e juízo especializado, todavia, são ex-
pressões que não se confundem. Enquanto aquela,
como af‌i rmamos, espelha a garantia constitucional
de que ninguém poderá ser julgado a não ser por
órgão jurisdicional preexistente, este indica a exis-
tência de órgãos jurisdicionais de competência
específ‌i ca (em contraposição à competência co-
mum), como são os casos da Justiça do Trabalho, da
Justiça Eleitoral e da Justiça Militar.
Mesmo no caso da arbitragem não ocorre des-
compasso com o art. 16, do CPC, porquanto o art.
18 da Lei n. 9.307, de 23.9.1996, declara que o árbitro
“é juiz de fato e de direito”. Justamente por ser juiz
é que o árbitro profere sentença (art. 23). A peculia-
ridade da arbitragem f‌i ca por conta do fato de os
árbitros poderem ser nomeados pelas próprias par-
tes envolvidas no conf‌l ito de interesses (at. 13, § 1º).
No desempenho de suas funções, “o árbitro deverá
proceder com imparcialidade, independência, com-
petência, diligência e discrição” (art. 13, § 6º).
60
• Comentário
Regra semelhante constava do art. 3º do CPC
revogado. Este dispunha que o interesse e a legiti-
midade eram requisitos necessários para “propor ou
contestar ação”. Sempre sustentamos que essa nor-
ma legal dizia menos do que pretendia (minus dixit
quam voluit) ou deveria dizer, pois essas condições
também eram indispensáveis para excepcionar, para
recorrer, para impugnar, para embargar, enf‌i m, para
praticar qualquer ato processual. O CPC atual, em
linguagem mais, precisa, fala que a legitimidade e o
interesse são necessários para “postular em juízo”.
O interesse e a legitimidade traduzem condições
necessários para o exercício do direto constitucional
de ação e para a prática de todos os atos indispen-
sáveis à consecução dos objetivos que levaram as
partes a litigar em juízo.
A despeito de a ação, como pudemos ver,
constituir um direito subjetivo público de índole
constitucional, de par com ser autônoma e abstrata,
o correspondente exercício pode ser subordinado ao
atendimento de certos requisitos legais, como medi-
da tendente a evitar que a atuação do poder-dever
jurisdicional do Estado seja provocado por aquele
que não reúna condições para realizar essa invoca-
ção. Permitir, pois, que o interessado impetrasse a
tutela jurisdicional sem a observância de quaisquer
requisitos seria, em nome do direito de ação, abrir
larga oportunidade ao abuso do direito, às aventu-
ras judiciais.
As condições da ação foram realçadas na doutrina
do notável Enrico Tullio Liebman, cuja residência, em
nosso País, entre os anos de 1940 e 1946, inspirou o
surgimento do que Alcalá-Zamora viria a denominar,
mais tarde, de “Escola Processual de São Paulo” —
ou “do Brasil?”, como indagam, com razão, Cintra,
Grinover e Dinamarco (obra cit., 8. ed., 1986. p. 80).
Discípulo de Chiovenda, Liebman conhecia em
profundidade as doutrinas processuais italiana e
alemã, pois além de grande estudioso do assunto
era Professor titular de direito processual civil na
Universidade de Parma. A extraordinária cultura
jurídica e a personalidade afável do jovem mestre
italiano logo motivaram a que pensadores brasileiros
dele se acercassem, ávidos de entrarem em contato
com as ideias imperantes na velha Europa. Surgiram,
então, as reuniões semanais na casa de Liebman, em
São Paulo. Como anota Cândido Dinamarco, “Sob
sua orientação segura, os discípulos ganharam asas e
alcançaram voos alcandorados no céu da cultura proces-
sualística” (Fundamentos do processo civil moderno. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. p. 8).
Alfredo Buzaid, um dos discípulos de Liebman,
absorveu, com f‌i delidade, as lições do mestre; mais
que isso, as utilizou na elaboração do anteprojeto do
Código de Processo Civil de 1973, ao tempo em que
era Ministro da Justiça.
Com efeito, aquele diploma processual civil fazia
referência às condições da ação no art. 267, VI, de-
clarando, em harmonia com a doutrina de Liebman,
que elas compreendiam: a) a possibilidade jurídica
do pedido; b) a legitimidade das partes; e c) o inte-
resse processual.
A inexistência de quaisquer dessas condições po-
deria conduzir ao indeferimento da petição inicial
(CPC, art. 295, II e III e parágrafo único, III), com
a consequente extinção do processo sem pronuncia-
mento sobre o mérito (CPC, art. 267, VI).
a) Possibilidade jurídica do pedido
A expressão “pedido juridicamente impossível”
tem sido, na prática, incorretamente interpretada. No
âmbito do processo do trabalho, e. g., quando o empre-
gado deduz uma pretensão fundada em direito que,
em verdade, nem a lei, o contrato ou o instrumento
normativo lhe conferem, costuma-se declará-lo care-
cedor da ação, sob o argumento de que o seu pedido,
por não ter amparo em quaisquer das fontes citadas,
é juridicamente impossível. Venia concessa, como bem
adverte Moniz de Aragão, a possibilidade jurídica de
um pedido judicial não deve ser, como geralmente
o é, conceituada segundo o ângulo da existência, no
ordenamento jurídico, de uma previsão que torne o
pedido viável, em tese, mas, ao contrário, com vistas
à inexistência, nesse ordenamento, de forma que o faça
inviável (Comentários ao Código de Processo Civil. Rio
de Janeiro: Forense, v. II, 1974. p. 436).
Bem se percebe, pois, que no exemplo citado o
empregado não poderia ser declarado carecente da
ação, na medida em que inexiste, no ordenamento
legal, qualquer veto à pretensão por ele apresenta-
da. Uma coisa, consequentemente, é a lei não prever
o direito invocado pela parte e outra, a lei proibir a
formulação de certos pedidos.
Quando a lei não ampara um determinado pe-
dido, este deve ser rejeitado, sem que se pronuncie
eventual carência da ação, relativamente a quem o
formulou.
Erro inveterado, como já alertamos, em que
vem incidindo a jurisprudência trabalhista, no que
respeita ao assunto em exame, é declarar o autor ca-
recedor da ação sempre que não reconhece o vínculo
de emprego com o réu, por ele pretendido. Até onde
sabemos, não há, no ordenamento legal, qualquer
regra vedatória de um pedido dessa natureza; além
disso, o réu, na hipótese, não seria parte ilegítima
para responder à ação, tão certo como o autor teria
inegável interesse de agir em juízo.
O caso é, portanto, de rejeição do pedido (reconhe-
cimento da relação de emprego), que envolve exame
do mérito e não de imaginária “carência da ação”,
que acarretaria a extinção do processo sem resolu-
ção das questões de fundo (lide).
Estas nossas considerações, aliás, vêm a propósito.
Art. 17
Art. 17. Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade.
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De acordo com o sistema construído por Lie-
bman, a ausência de quaisquer dessas condições
enseja a declaração de carência da ação e a extinção
do processo sem prospecção do mérito. É precisa-
mente neste ponto que lavramos divergência quanto
à doutrina liebmaniana quanto ao pedido juridica-
mente impossível. Ocorre que se há nas estruturas
normativas um veto à dedução de certo pedido,
a sentença, que faz respeitar esse veto, invade o
campo do mérito e, conseguintemente, acarreta a
extinção do processo com exame do meritum causae.
Ilustremos com um caso característico: o do pedido
lastreado em dívida oriunda de jogo (Código Civil,
art. 814: (“As dívidas de jogo ou de aposta não obri-
gam a pagamento”). Conformando-se esse pedido,
com perfeição, ao conceito doutrinário de impossibi-
lidade jurídica, é óbvio que a sua rejeição, pela dicção
jurisdicional, acarreta um inevitável aportamento ao
mérito da causa. A entender-se de maneira oposta,
ter-se-ia de justif‌i car a possibilidade de o autor re-
novar o pedido, mediante nova ação, tantas quantas
fossem as vezes que desejasse, porquanto, segundo o
tratamento que o CPC de 1973 deu à matéria, a pro-
núncia de carência não inibia ao autor de ingressar
em juízo, novamente, com o mesmo tipo de pedido,
contanto que em ação renovada (art. 268, caput).
Por aí se constata o deslize cometido, a princípio,
pelo ilustre jurista italiano, ao introduzir a possibili-
dade jurídica do pedido no grupo das condições da ação.
Dissemos a princípio porque, mais tarde, Liebman
reformulou o seu entendimento a respeito do assun-
to, para excluir a possibilidade jurídica do pedido
do elenco das condições da ação, como revelam es-
tas suas palavras: “Le condizioni dell’azione, poco
fa menzionate, sono l’interesse ad agire e la legi i-
mazione. Esse sono, come gìa accenato, i requisiti
di esistenza dell’azione, e vanno percio accertate in
giudizio (anche se, di solito, per implicito) preli-
minarmente all’esame del mérito. Solo si ricorrono
questi condizioni, puo considerasi esistente l’azione
e sorge per il giudice la necessità di providere sulla
domanda, per accoglierla o respingerla” (obra cit.,
p. 120). Essas condições f‌i caram, por isso, segundo
ele, reduzidas a duas: a) legitimidade ad causam; e b)
o interesse processual, em que pese ao fato de as três
condições, apontadas por Liebman, permanecerem
integradas ao sistema do CPC de 1973, até os últi-
mos momentos de sua vigência.
Pela nossa parte, íamos além: considerávamos
uma só condição da ação: o interesse processu-
al, conquanto admitíssemos que nessa qualidade
também fosse mantida a ilegitimidade ad causam,
desde que a parte declarada ilegítima não pudesse
intentar, novamente, a ação — ao contrário, pois, do
disposto no art. 268, daquele CPC do passado.
b) Legitimidade ad causam
A legitimidade para a causa f‌i gura, legalmente,
como uma das condições da ação (CPC, art. 17). Tan-
to pode ser ativa quanto passiva.
Via de regra, a legitimidade ad causam é do pos-
sível titular do direito material que dá conteúdo à
res in iudicio deducta. Segue-se, que tirante os casos
de legitimação anômala ou extraordinária — que
conf‌i guram a denominada substituição proces-
sual — somente pode integrar a relação jurídica
processual a pessoa que seja titular da obrigação
correspondente ao direito alegado. Essa particulari-
dade levou Liebman a referir-se à “pertinência da
ação àquele que a propõe e em confronto com a ou-
tra parte” (Manuale di diri o processuale civile. 3. ed.
Milão: Giu rè, v. I, p. 120).
Podemos af‌i rmar, por outras palavras, que a legi-
timidade para a causa consiste na individualização
daquele a quem pertence o interesse processual e
daquele perante o qual se formula a pretensão.
Retornemos ao exemplo do autor que ingressa
em juízo visando a obter um provimento declarató-
rio de existência de relação de emprego com o réu,
para enfatizarmos a impropriedade científ‌i ca das
sentenças que, negando a presença do vínculo em-
pregatício, consideram o autor carecente da ação,
por ser o réu, supostamente, parte ilegítima ad causam.
Ora, provada que esteja a prestação pessoal de
serviços ao réu, é elementar que este se encontra
passivamente legitimado para a causa; portanto, é
precisamente diante dele que o autor deve manifes-
tar a sua pretensão, sabendo-se que “são legitimados
para agir, ativa e passivamente, os titulares dos in-
teresses em conf‌l ito” (SANTOS, Moacyr Amaral.
Primeiras linhas de direito processual civil. São Paulo:
Saraiva, v. I, 1978. p. 144).
Sempre, pois, que o réu estiver vinculado a uma
situação jurídica proveniente das alegações formula-
das pelo autor, ele estará, fora de qualquer dúvida,
legitimado para a causa.
Ilegitimidade do réu existiria, isto sim, se (ainda
no exemplo da relação de emprego) o autor houves-
se deduzido a sua pretensão diante de pessoa diversa
daquela para a qual prestou serviços.
Mesmo que o órgão jurisdicional não reconheça a
relação de emprego desejada pelo autor (logo, a sen-
tença seria declaratória-negativa) isso não signif‌i ca
que devesse declará-lo carecente da ação, porquan-
to as correspondentes condições foram atendidas
(supondo-se que sim). Os juízes que, em casos dessa
espécie, emitem um decreto de carência, ignoram
que o interesse de agir em juízo é processual e algo
abstrato, que em nada se relaciona com o direito ma-
terial que, acaso, busque proteger; confundem, em
síntese, o exercício do direito de ação com o resultado
da prestação jurisdicional. O que deve ser evitado.
Como asseveramos no ensejo da apreciação da
possibilidade jurídica do pedido, pelo sistema das
condições da ação, construído por Liebman e in-
corporado pelo diploma processual civil de 1973, a
consequência da declaração de carência é a extinção
do processo sem penetração no mérito. Em termos
concretos, isso equivale a af‌i rmar que se a sentença
considerar o réu parte ilegítima ad causam essa cir-
cunstância não impedirá o autor de voltar a ajuizar
ação em face do mesmo réu, com fundamento na
Art. 17

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