Por mares nunca dantes navegados? As Justiças Penais Indígenas e o confronto com a matriz ocidental. Uma análise dos processos criminais na Serra da Lua x Raposa Serra do Sol/By seas never sailed before? Indigenous Criminal Justices and the confrontation with the western matrix. An analysis of criminal cases in Serra da Lua x Raposa Serra do Sol.

Autorda Costa Vieira, Fernanda Maria

Introdução

De tanto olhar as grades o seu olhar esmoreceu e nada mais aferra. Como se houvesse só grades na terra: grades, apenas grades para olhar. A onda andante e flexÃÂvel do seu vulto em cÃÂrculos concêntricos decresce, dança de força em torno de um ponto oculto no qual um grande impulso arrefece. De vez em quando o fecho da pupila abre-se em silêncio. Uma imagem, então, na tensa paz dos músculos instila-se para morrer no coração. A pantera. Rainer Maria Rilke Em 2015, ocorreu o chamado 1o Tribunal do Júri IndÃÂgena em Raposa Serra do Sol (1), em Roraima, apontado por diversas autoridades do sistema de justiça como o modelo de prestação jurisdicional por ter o corpo do Conselho de Sentença formado integralmente por indÃÂgenas de múltiplas etnias. Apesar do resultado final ter representado uma mediação por parte do Conselho de Sentença entre direito estatal e indÃÂgena, o "coordenador regional da região das serras, Zedoeli Alexandre, avaliou o julgamento dos 'brancos' como brutal" (COSTA, 2015, [on line]).

Seria o referido Tribunal uma expressão não ocidental em termos de punição? O espetáculo promovido pelo Júri é a forma com que os indÃÂgenas realizam a apreciação dos conflitos internos? O fato de ser composto por jurados indÃÂgenas implica numa modelagem diferenciada?

Em outra experiência de crime de homicÃÂdio ocorrido em 2009 na região de Serra da Lua (2), também em Roraima, o processo se deu de forma diferenciada. Antes da decisão de pronúncia ou não pela Justiça Criminal de Roraima, o Conselho da comunidade indÃÂgena do Manoá se reuniu com a lideranças indÃÂgenas, Tuxaus de várias comunidades, entre elas, Anauá, Manoá, Wai Wai, e servidores da Funai e Ao final, concluÃÂram pela imposição de sanções para além da lógica prisional ou do isolamento celular, marca da modelagem penal ocidental (3).

Apesar de não ocorrer a prisão como pena principal em nenhum dos casos, a formação processual se dá de forma diferenciada. O processo criminal de homicÃÂdio ocorrido em 2009 na Serra da Lua foi julgado em uma reunião de lÃÂderes de diversas etnias que aplicaram a sanção penal ao réu, posteriormente acatada pelo juÃÂzo monocrático, que não acolheu a denúncia realizada pelo Ministério Público. O denominado 1o Tribunal do Júri IndÃÂgena ocorrido em 2015 em Raposa Serra do Sol, apesar do Conselho de Sentença ser composto integralmente por indÃÂgenas, manteve a ritualÃÂstica ocidental na decisão de condenação por tentativa de homicÃÂdio.

Buscamos analisar essas duas modelagens que apresentam de forma distinta as formas de resolução de conflito na esfera penal, compreendendo a possibilidade de uma experiência alternativa ao modelo hegemônico efetivado no campo penal da matriz ocidental.

A experiência do exercÃÂcio penal ocorrido em Raposa Serra da Lua apresentou não apenas uma ruptura com a "sedução punitiva", marca ocidental, que tem na prisão quase como a única resposta válida em termos criminais, mas também rompe com a própria construção ocidental no campo da formação processual, como nos lembra Nils Christie (1997).

O presente artigo buscará, então, analisar a partir de teóricos decoloniais a relação entre sistemas punitivos indÃÂgenas e a matriz ocidental, que nos legou dimensões do aparato punitivo que se apresentam como uma expressão moderna e racional. A leitura decolonial visa perceber alternativas ao modelo ocidental sustentado no dogma da pena, dimensão que valida um único método de resolução no campo penal, impossibilitando o reconhecimento de métodos alternativos como transação penal e outras formas de responsabilização que não se reduzem àpena de prisão (PIRES, 2004).

Os processos a serem analisados apontam para a distinção de modelos punitivos. A tradição ocidental construiu sua racionalidade punitiva de forma seletiva priorizando os corpos a serem capturados pelo sistema penal. Essa modernidade, que expressa uma colonialidade do saber, poder e do ser (MIGNOLO, 2005; QUIJANO, 2005), significa a imposição do rebaixamento de experiências, epistemologias, cosmovisões distintas dos parâmetros ocidentais.

Trata-se de impor o primado do modelo construÃÂdo pelo ocidente, que no decorrer da sedimentação do modo capitalista privilegiou a prisão como pena exemplar (RUSCHE, 1999). O modelo de isolamento celular imposto pelo cárcere gesta uma infantilização do réu na medida em que o retira da sociedade. Zaffaroni (2007) alerta para o falso discurso ressocializador da pena.

Serão os corpos entendidos historicamente como não-seres que sentirão o peso da estrutura punitiva, capturados dentro dessa normatividade penal. O desprezo por paradigmas não ocidentais de prestação da justiça coloca em cheque a aplicabilidade de normas com o intuito de ruptura com esse modelo que se propõe a ser universal, dentre elas cita-se a Resolução 287/19 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (4).

De fato, normatividades internacionais reconhecem a validade da justiça indÃÂgena como mediadora de conflitos ocorridos em seus territórios, como o art. 9 da Convenção 169 da OIT (5). No entanto, a formação positivista que marca os cursos jurÃÂdicos brasileiros parte de uma unidade entre estado, lÃÂngua, povo, território, retirando possibilidades várias de resolução de conflitos não derivados da ação penal e da pena de prisão.

Analisar as duas ações, que oferecem o confronto resolutivo a partir do paradigma hegemônico ocidental e o contra-hegemônico de matriz não ocidental, a partir de uma leitura decolonial, nos abre possibilidades de pensar alternativas ao modelo punitivo no ocidente marcado por um encarceramento massivo dos indesejáveis.

1. A sedução das grades: A prisão como única alternativa penal.

Os estudos no campo da criminologia crÃÂtica apontam para o preocupante paradigma que sustenta o sistema penal ocidental: o dogma da pena, que se manifesta no encarceramento em massa vivenciado nas duas últimas décadas em escala global.

Álvaro Pires (2004) pesquisa essa dimensão do dogma da pena fazendo uma recuperação histórica onde percebe, a partir da segunda metade do século XVIII, o que denomina como "racionalidade penal moderna".

Trata-se de um sistema de pensamento ligado a um conjunto de práticas institucionais jurÃÂdicas que se designa como "justiça penal" ou "criminal", constituÃÂdo por uma rede de sentidos com unidade própria no plano do saber e que liga estreitamente fatos e valores, o que lhe confere um aspecto normativo. Esse sistema de pensamento, que aqui denominarei como "racionalidade penal", produz um ponto de vista que contribui para construir um subsistema jurÃÂdico especÃÂfico, o sistema penal moderno, e para justificar a forma especÃÂfica que ele assume (PIRES, 2004, p 40) Para Pires (2004) o que se observa com a efetivação dessa racionalidade penal moderna é uma construção dogmática que se alicerça no paradigma prescrição-sanção. De um lado, uma norma de comportamento, fazer ou não fazer, de outro a sanção a ser aplicada na ocorrência da conduta delitiva.

O que Pires (2004) esclarece é que esse modelo constrói uma dimensão impositiva na relação entre o comportamento e a sanção, estabelecendo que necessariamente deva haver uma punição correspondente ao comportamento tido como desviante. Mais. "É a pena aflitiva--muito particularmente a prisão (6)--que assumirá o lugar dominante no auto-retrato identitário do sistema penal" (PIRES, 2004, p. 41).

Tal perspectiva fornecida por Pires (2004) auxilia na compreensão de como se construiu na modernidade ocidental uma dimensão de pena, especialmente prisão, como o método de resolução de conflito, deslegitimando (7) qualquer outra possibilidade que não tenha no horizonte a punição-prisão, tornando ineficaz qualquer tentativa de resolução de conflito que não passe pela esfera da jurisdição criminal.

O ocidente tornou hegemônica a combinação entre a estrutura ideológica (8) construÃÂda na relação crime-sanção ao mesmo tempo em que valora a necessidade de uma pena aflitiva, de tal maneira que experiências históricas onde o sistema punitivo nos crimes de homicÃÂdio, comportamento dos mais reprováveis, não se baseava em penas aflitivas, adotavam reparação pecuniária, acabaram sendo nomeados como povos bárbaros.

Pires (2004) aponta para a relação que se constrói a partir do século XVIII onde a pena adquire o status de "melhor defesa contra o crime". Deriva daàesse dogma da pena, fórmula que projeta um simbolismo para a pena, qual seja: o de convencimento social com sua potência de dissuadir terceiros de cometer delitos e, por óbvio, esse simbolismo de convencimento impõe a pena exemplar.

A partir do século XVIII o sistema penal projeta um auto-retrato identitário essencialmente punitivo, em que o procedimento penal hostil, autoritário e acompanhado de sanções aflitivas é considerado o melhor meio de defesa contra o crime ("só convém uma pena que produza sofrimento") (...) Essas teorias concebem a proteção da sociedade ou a afirmação das normas de modo hostil, abstrato, negativo e atomista. Hostil, por representarem o transgressor como um inimigo de todo o grupo e por estabelecerem uma equivalência necessária (mesmo ontológica) entre o valor do bem ofendido e o grau de sofrimento que se deve infligir ao transgressor. Abstrato...

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