O melhor dos regimes existentes: a lei

AutorMarcella Furtado de Magalhães Gomes
Páginas388-422
4. O MELHOR DOS REGIMES
EXISTENTES: A LEI
Com leis ruins e funcionários bons ainda é possível governar. Mas com
funcionários ruins as melhores leis não servem para nada.1
Oo von Bismarck
Após a classificação dos regimes, Aristóteles levanta a
reflexão central de nossa tese e que tem dividido os
comentadores: Se um homem excede a todos os demais em
virtude, deveria submeter-se às leis? É possível que tal
homem caminhe entre nós? Quem deve ser a autoridade
suprema da cidade, o homem ou a lei (Política, III, 15, 1286a 8-
9)? Há dificuldades a serem consideradas seja qual for a
resposta (Política, III, 10).
Em primeiro lugar, devemos considerar a quem excede
este tão virtuoso homem. Talvez seja possível que um homem
ultrapasse a todos os demais, individualmente tomados, em
virtude. Contudo, é possível que um homem também os
exceda em virtude se os considerarmos coletivamente?
Muitas pessoas comuns, em conjunto, podem ser melhores do
que um pequeno número de pessoas excelentes. Argumenta o
estagirita (Política, III, 1281a 40 – 1281b 21):
The principle that the multitude ought to be in power rather than
the few best might seem to be solved and to contain some
difficulty and perhaps even truth. For the many, of whom each
individual is not a good man, when they meet together may be
beer than the few good, if regarded not individually but
collectively, just as a feast to which many contribute is beer than
a dinner provided out of a single purse. For each individual
among the many has a share of excellence and practical wisdom,
and when they meet together, just as they become in a manner
one man, who has many feet, and hands, and senses, so too with
regard to their character and thought. Hence the many are beer
judges than a single man of music and poetry; for some
understand one part, and some another, and among them they
understand the whole. […] Whether this principle can apply to all
bodies of men it is not clear. Or rather, by heaven, in some cases it
is impossible to apply; for the argument would equally hold about
brutes; and wherein, it will be asked, do some men differ from
brutes? But there may be bodies of men about whom our
statement is nevertheless true.
É importante ressalvar que Aristóteles não está dizendo
que toda multidão, porque soma os caracteres dos indivíduos
que as compõem, é melhor que alguns poucos excelentes.
Como ele rapidamente destaca, um conjunto de degenerados
é pior do que alguns poucos homens bons. Contudo, se
tomamos uma população mediana e a congregamos para
discutir suas posições individuais e chegar a uma decisão
coletiva, a combinação das opiniões e dos traços de caráter de
todos pode ultrapassar, em prudência, a escolha de um sábio.
Neste sentido, esclarece Kraut (2002, p. 405-406):
I suggest that we should not take Aristotle to be saying that
whenever defective individuals come together as a group, they
make good collective decisions. He is making a far more cautious
claim: when certain kinds of person come together – namely those
whose deficiencies are not great – they can make decisions that
promote their common good. Certain kinds of person can enter
into a discussion and learn from what others are saying. They
recognize that they sometimes make mistakes when they are on
their own, and that they need to expose their ideas to public
criticism. They are not slavishly submissive to authority, and so
they demand reasons; but at the same time, they do not see
politics as an arena in which the goal is to get others to submit to
their will. People of this sort can learn both from each other and
from those who are practically wise. When these sorts of person
get together, they make good collective decisions, despite their
lack of perfect virtue. […] Aristotle is not talking about a mere
aggregation of opinions, but about a process of discussion and
debate that is carried out before a final decision is made. His point
must be that when deficient people participate in this process,
then, so long as they are not too deficient, they are capable of
reaching a sound conclusion. And the sorts of deficiency he has in
mind must be ones that prevent people from listening to such
arguments.
Em segundo lugar, devemos considerar o que significa
ultrapassar a todos os demais, individual e coletivamente
tomados, em virtude.
Ora, os homens são, ao mesmo tempo, animais e
racionais, ou seja, a racionalidade que os conduz à
autorrealização está sempre acompanhada de instintos de
preservação e de impulsos sensíveis que, se não controlados,
podem arrastá-los sem direção (Política, III, 15, 1286a 15-19).
Mesmo os virtuosos não estão isentos de erros (Política,
III, 16, 1287a 30-31). A razão humana não é onisciente e não
pode antecipar todas as circunstâncias em que o agir estará
circunscrito. Ademais, a excelência não é alcançada em uma
ação, mas ao longo de toda a existência e, durante essa
jornada, até o mais virtuoso dos homens pode ceder à pressão
de seus desejos.
Por outro lado, ainda que a lei seja fruto do trabalho de
seres sensíveis, em si não possui paixões (Política, III, 15,
1286a 19). Também não é o resultado da vontade de um
homem, mas representa a reflexão consciente de toda uma
coletividade sobre o que devemos ou não fazer. Ainda que o
poder de criar ou de aplicar a lei possa, numa monarquia, por
exemplo, derivar de um só homem, não podemos dizer que o
conteúdo desta regra seja produto da vontade de homem,
pois deriva do acúmulo das experiências da coletividade na
qual ele está inserido. A lei é sempre representação da praxis
reiterada e racionalizada de uma coletividade.

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