O mínimo existencial / The right to basic conditions of life

AutorDaniel Sarmento
CargoProfessor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pós-doutorado na Universidade de Yale - EUA (2006). Coordenador da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ - Clínica UERJ Direitos. E-mail: sarmento_daniel@yahoo.com.br
Páginas1644-1689
Revista de Direito da Cidade vol. 08, nº 4. ISSN 2317-7721
DOI: 0.12957/rdc.2016.26034
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Revista de Direito da Cidade, vol. 08, nº 4. ISSN 2317-7721 pp. 1644- 1689 1644
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O presente artigo tem como objetivo analisar o direito ao mínimo existencial, como componente
do princípio da dignidade da pessoa humana na ordem constitucional brasileira. O texto discute os
fundamentos filosóficos do direito ao mínimo existencial, o seu conteúdo jurídico e os limites e
possibilidades de sua proteção judicial.
- Mínimo existencial, direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana, reserva
do possível, ponderação de interesses, diálogos institucionais.
This article aims to discuss the right to basic conditions of life, as a component of the principle of
human dignity in the Brazilian constitutional order. The article discusses the philosophical
foundations of the right to basic conditions of life, its legal content as well as the limits and
possibilities of its judicial protection.
right to basic conditions of life, fundamental rights, human dignity, minimum core,
balancing of rights, institutional dialogu es.
1 Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pós-doutorado na
Universidade de Yale - EUA (2006). Coordenador da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito
da UERJ - Clínica UERJ Direitos. E-mail: sarmento_daniel@yahoo.com.br
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DOI: 0.12957/rdc.2016.26034
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I
“Parece duro que, pela falta de habilidade que não consegue superar, apesar de todos os
seus esforços, um artesão passe fome. Parece duro que um trabalhador, incapacitado pela doença
de competir com os mais fortes, tenha que suportar privações. Parece duro que viúvas e órfãos
sejam deixados à própria sorte, para que lutem pela sua vida ou morte. Mas, quando observados
não de modo isolado, mas em conexão com os interesses universais da humanidade, essas duras
fatalidades parecem ser da mais elevada benevolência” (SPENCER, 1958, p. 137).
O texto acima, que causa engulhos até em pessoas de coração menos sensível, é de
Herbert Spencer, filósofo inglês do século XIX, criador do darwinismo social, que sustentava que
qualquer tipo de intervenção do Estado ou da sociedade voltada para a proteção das pessoas mais
vulneráveis deveria ser repelida, por atentar contra o interesse geral de que apenas os mais aptos
sobrevivam. As ideias de Spencer exerceram grande influência na Economia, na Filosofia Política e
até mesmo no Direito Constitucional. Em um dos mais conhecidos votos divergentes da história do
constitucionalismo norte-americano, Oliver Wendell Holmes, no início do século passado,
protestou contra a adesão dos juízes da Suprema Corte à filosofia de Spencer, que ele não
conseguia entrever na Constituição do país (ESTADOS UNIDOS, Suprema Corte, 1905).
A garantia jurídica do mínimo existencial corresponde à absoluta rejeição dessa filosofia
social-darwinista. Não é de todo nova a compreensão de que o Estado e a sociedade devem prover
as condições materiais básicas para os necessitados, que não tenham condições de se sustentar.
Gerardo Pisarello aludiu à existência, já na Antiguidade e na Idade Média, de “diferentes
mecanismos institucionais, embora não necessariamente estatais, voltados a aliviar situações
prolongadas de pobreza e a assistir aos grupos mais necessitados” (PISARELLO, 2007, p. 20). Há
também quem localize a origem dessa noção nas Poo r Laws inglesas, existentes desde o século XVI,
especialmente a partir da Speedhamland Law, de 1795, que suprimiu o condicionamento ao
trabalho obrigatório para a assistência social aos desamparados (PEREIRA, 2000, p. 103-106). A
Constituição francesa de 1793 já proclamava, em seu artigo 21, o direito aos socorros públicos, e
preceito similar foi reproduzido pela Carta brasileira de 1824 (art. 179, XXXI), o que levou Paulo
Bonavides e Paes de Andrade (1991, p. 100) a apontarem a “sensibilidade precursora para o social”
da nossa Constituição imperial. Foi, porém, a partir do constitucionalismo social, inaugurado pela
Constituição mexicana de 1917 e pela Constituição de Weimar de 1919, que a concepção de que
cabe ao Estado garantir os direitos sociais ganhou contornos mais claros.
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DOI: 0.12957/rdc.2016.26034
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É provável que a primeira formulação jurídica do direito ao mínimo existencial se deva a
um jurista brasileiro e não a um alemão, como geralmente se afirma. Já em 1933, Pontes de
Miranda se referiu à existência de um direito público subjetivo à subsistência dentre o elenco dos
novos direitos do homem” que compreenderia o que chamou de “mínimo vital”. Nas suas
palavras,
Como direito público subjetivo, a subsistência realiza, no terreno da
alimentação, das vestes e da habitação, o standard of living segundo três
números, variáveis para maior indefinidamente e para menor até o limite,
limite que é dado, respectivamente, pelo indispensável à vida quanto à
nutrição, ao resguardo do corpo e à instalação.
É o mínimo vital absoluto. Sempre, porém, que nos referirmos ao mínimo
vital, deve-se entender o mínimo vital relativo, aquele que, atentando-se às
circunstâncias de lugar e de tempo, se fixou para cada zona em determinado
período (...). O mínimo vital relativo tem de ser igual ou maior que o
absoluto.
O direito à subsistência torna sem razão de ser a caridade, a esmola, a
humilhação do homem ante o homem. (...) Não se peça a outrem, porque
falte; exija-se do Estado, porque êste deve. Em vez da súplica, o direito
(PONTES DE MIRANDA, 1933, p. 28-30).
Sem embargo, é certamente marcante na trajetória do Direito Constitucional a formulação
germânica do direito ao mínimo existencial, ocorrida no segundo pós-guerra, já sob a égide da Lei
Fundamental de 1949. A ideia de que existe um direito fundamental ao mínimo existencial,
proposta originariamente naquele país no início dos anos 50 por Otto Bachof (1954, p. 42) foi
reconhecida pelo Tribunal Administrativo Federal alemão em 1954 (ALEMANHA, Tribunal
Administrativo Federal, 1954) a partir da conjugação do princípio da dignidade da pessoa humana,
da cláusula do Estado Social e dos direitos à liberdade e à vida. Em 1975, o direito foi afirmado em
célebre decisão do Tribunal Constitucional germânico1 (ALEMANHA, Tribunal Constitucional
Federal, 1975) em jurisprudência que se mantém até hoje. Posteriormente, tribunais
constitucionais ou supremas cortes de diversos outros países, como Portugal2 (PORTUGAL, Tribunal
Constitucional, 2002), Israel (BARAK, 2015, p. 288), Índia3 (MURALIDHAR, 2008) e Colômbia
(ARANGO; LEMAITRE, 2002) recorreram, com algumas variações, ao mesmo conceito ou a
construções similares (DALY, 2013).
No Brasil, ideias como as de Spencer não conquistam praticamente nenhum apoio na
sociedade. Pelo menos no plano do discurso, parece existir certo consenso no sentido de que se
deve assegurar a todos o acesso às condições materiais básicas para uma vida digna. Na
atualidade, nenhum ator político relevante se insurge publicamente contra, por exemplo, o papel
do Estado na prestação de serviços de saúde, educação, previdência e assistência social. Nada

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