A mobilização do direito por defensores públicos: o caso das ocupações no centro de Vitória/Legal mobilization by public defenders: the case of occupations in downtown Vitória.

AutorPaula, Vinícius Lamego de

Introdução (1)

Em abril de 2017, o Núcleo de Defesa Agrária e Moradia, da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (Nudam) foi acionado por algumas pessoas que se apresentaram como lideranças de uma ocupação de um terreno denominado de "Fazendinha", localizado na cidade de Vitória, entre os bairros Universitário e Grande Vitória. A ocupação teve ampla cobertura da mídia local, sendo noticiada a existência de 500 famílias no local, que sem ter outro lugar para morar nem condições de pagar um aluguel, tomaram posse do terreno, dividiram os lotes e levantaram barracos de lona e de madeira (SCALZER, 2017).

Após realizar o atendimento dos representantes da ocupação, o Nudam passou a realizar a assistência jurídica dos ocupantes da Fazendinha e das várias outras ocupações que vieram em sequência. Com a desocupação forçada da Fazendinha, cerca de 100 pessoas, que buscavam ser inseridas no cadastro único do município de Vitória, ocuparam temporariamente o pátio central da Casa do Cidadão, onde este cadastramento é realizado. Saindo de lá, os ocupantes se dirigiram para o Edifício Presidente Getúlio Vargas (IAPI), ocupando o primeiro dos pelo menos 14 (quatorze) edifícios vazios ocupados no Centro de Vitória. (2)

A atuação nesse ciclo de ocupações fez com que os defensores do Nudam e da Defensoria Regional de Direitos Humanos, da Defensoria Pública da União no Espírito Santo (DRDH/ES) se aproximassem não apenas dos ocupantes dos imóveis, mas também das organizações de ocupações: o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), as Brigadas Populares e a União de Juventude Comunista (UJC); de atores que prestam algum apoio às ocupações: estudantes, professores e profissionais da área do Direito e da Arquitetura e Urbanismo, representantes da Associação de Moradores do Centro de Vitória (Amacentro).

Ao mesmo tempo, os defensores públicos passaram a atuar não apenas no âmbito judicial, mas também de forma extrajudicial, em reuniões com a administração pública, em audiências públicas, em atividades de educação em direitos, em seminários, em rodas de conversa, em ações de mobilização, em campanhas, em intervenções de rua.

Essa atuação coordenada com diversos atores conta com um variado repertório que vai além da utilização de instrumentos judiciais e se afasta do que se compreende como uma atuação tradicional da Defensoria Pública. Dessa forma, nesse artigo, pretende-se investigar o que se entende por atuação não tradicional da Defensoria, os elementos institucionais que dão origem a essa nova forma de atuação e como ela é performatizada no caso das ocupações de imóveis vazios no Centro de Vitória.

Como essa atuação não tradicional ultrapassa as barreiras da esfera judicial e envolve atores e espaços de dentro e de fora do sistema de justiça, utiliza-se o marco teórico da Legal Mobilization Theory (Teoria da Mobilização do Direito), cujo enfoque, segundo McCann (2010, p. 182), desloca o foco dos tribunais para os usuários e utiliza o direito como um recurso de interação política e social.

A presente pesquisa consiste em um estudo de caso da participação de defensores públicos na coalização conflituosa de reivindicação do direito à moradia e à cidade, que surge em Vitória, a partir de 2017, e busca se aprofundar nos elementos interacionais que compõem esse fenômeno. O método empregado é de caráter qualitativo, o qual, de acordo com Lazarsfeld (1969, p. 169, apud HAGUETTE, 1992, p. 59) é adequado para captar dados psicológicos que são reprimidos ou não facilmente articulados, como atitudes, motivos, pressupostos, quadros de referência etc. Esse estudo não tem como propósito a generalização dos resultados obtidos, mas sim a explicação do caso analisado, gerando reflexões teóricas que poderão enriquecer os estudos sobre a participação de agentes de justiça nos confrontos políticos, servindo de parâmetro para outras análises empíricas semelhantes.

Nessa análise qualitativa, foi utilizada a técnica da observação participante. Como Defensor Público do Nudam eu atuei no caso em análise, desde abril de 2017, com a Ocupação da Fazendinha, interagindo e compartilhando experiências com os demais atores envolvidos. No ano de 2018, ao ingressar no mestrado e passar a estudar esse caso, comecei a registrar, em um caderno de campo, as minhas observações acerca das experiências vivenciadas.

Além da observação participante foram realizadas entrevistas, a análise de conteúdo de documentos, o mapeamento espacial e temporal do processo de ação coletiva. Em relação às entrevistas qualitativas, segundo Gaskell (2002, p. 65) elas fornecem dados básicos para o desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores socias e sua situação. No caso em questão, as entrevistas foram realizadas no sentido de se buscar a história de vida, motivações, opiniões e experiências compartilhadas pelos atores envolvidos no processo de luta por moradia no Centro de Vitória.

No total, foram realizadas 19 entrevistas com os atores mais envolvidos no processo de luta por moradia no Centro de Vitória, divididos em 04 (quatro) grupos: 06 (seis) ocupantes; 05 (cinco) atores participantes na organização das ocupações; 03 (três) defensores do Nudam; outros 05 (cinco) atores que prestaram algum tipo de apoio às ocupações (um defensor do DRDH/ES, duas profissionais de Arquitetura e Urbanismo, uma profissional do Direito e um representante da Amacentro). Para cada grupo de atores foi realizado um questionário, com perguntas semiestruturadas específicas. Buscando evitar uma exposição muito direta da imagem dos entrevistados, eles foram identificados, na dissertação, a partir das letras iniciais dos seus três primeiros nomes.

O artigo é desenvolvido em três seções. Na primeira, realiza-se uma abordagem teórica da presença dos agentes estatais em confrontos políticos, a partir da aproximação entre os estudos da mobilização do direito, da Cause Lawyering e dos serviços legais. Na segunda, analisa-se os elementos institucionais da Defensoria Pública que dão origem à sua atuação não tradicional. Na terceira-se seção descreve-se a atuação dos defensores enquanto agentes de mobilização do direito no caso das ocupações de imóveis vazios no Centro de Vitória.

  1. A mobilização do direito por agentes do Estado

    Com base nas teorias norte-americanas da sociologia jurídica, para McCann (2006) o direito deixa de ser compreendido estritamente a partir dos seus aspectos instrumentais, como as normas codificadas, as instituições e os agentes de justiça, passando a ser entendido como tradições particulares de conhecimento e práticas comunicativas de interação entre os agentes e de produção de significados. Na mesma linha, a mobilização do direito não se limita ao acionamento das cortes de justiça, abrangendo a utilização do direito, na prática social do cotidiano, pelos mais variados sujeitos, nos mais variados ambientes, desde os espaços mais informais, como os locais de trabalho, a vizinhança e as comunidades, até os espaços mais formais como os tribunais.

    No sentido de desenvolver a Teoria da Mobilização do Direito, McCann (2006, 2010) aproxima os estudos sócio-legais das abordagens dos movimentos sociais como confronto político, mas não descarta a adição de elementos de outras teorias de movimentos sociais.

    A Teoria do Confronto Político, formulada por Charles Tilly (1977, 2001, 2008) e seguida por Doug McAdam e Sidney Tarrow (2001), se aplica às ações coletivas que envolvem atores com interesses conflitantes e a participação do governo. Esse modelo de análise que leva em conta a influência de fatores políticos externos na mobilização social, seja para reprimi-la, seja para gerar oportunidades. Nas primeiras versões dessa teoria, a capacidade de aproveitamento dessas oportunidades é medida a partir da estrutura do grupo desafiante e da sua disponibilidade de recursos (TILLLY, 1977). Todavia, a partir da década de 1990, ela passa a inserir, de forma gradual, algumas dinâmicas e elementos de caráter mais cultural e relacional, como a disponibilidade dos modelos de reivindicação (o repertório de contestação) (TILLY, 2008). Ao conceber o repertório de contestação como um conjunto de performances, essa teoria pretende alcançar uma dimensão mais cultural do confronto (MCADAM, TARROW, TILLY, 2001). Em que pese esse desenvolvimento, a Teoria do Confronto Político ainda é criticada por autores da abordagem culturalista, como James Jasper (1997), para quem o conceito de estruturas de oportunidade política permanece amplo, subordinando os elementos culturais que provêm incentivos para a ação coletiva.

    A Teoria do Confronto Político tem sido adaptada por alguns teóricos da mobilização do direito para a análise dos elementos estruturais que compõem o campo jurídico e que interferem na utilização dos instrumentos legais pelos movimentos sociais, surgindo uma nova corrente teórica denominada de Estruturas de Oportunidades Jurídicas - LOS (VANHALA, 2011). Em seu modelo de LOS, Andersen aponta a presença de aliados inseridos no sistema de justiça como um relevante elemento estrutural, uma vez que Aliados podem arcar com os custos substanciais de iniciar um caso. Eles podem oferecer assistência com a invenção de estratégias legais. Eles podem ainda emitir pareceres de amicus curiae (amigo da corte). (ANDERSEN, 2008, p. 11, tradução nossa).

    A análise estritamente estrutural dos fatores que influenciam na utilização de estratégias jurídicas pelas organizações sociais é criticada por pesquisadores que defendem a importância das dinâmicas internas e dos elementos culturais na mobilização do direito. Neste sentido, Vanhala (2011) ressalta a importância do papel da agência das organizações sociais para a ocorrência da mobilização do direito. De acordo com a autora, as abordagens de oportunidade tendem a ignorar as dinâmicas internas das organizações e dos movimentos sociais, as quais podem exercer uma importante influência no rol de opções estratégicas e das táticas adotadas pelo grupo...

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