A mobilização jurídico-política do Movimento Antimanicomial no Brasil

AutorLudmila Cerqueira Correia
CargoProfessora adjunta no Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Páginas365-411
A mobilização jurídico-política do
Movimento Antimanicomial no Brasil1
The legal-political mobilization of the anti-asylum
movement in Brazil
Ludmila Cerqueira Correia*
Universidade Federal da Paraíba
1. Introdução
O Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) nasceu em dezem-
bro de 1987, após a I Conferência Nacional de Saúde Mental (junho/1987),
no II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, realizado
em Bauru – SP, com o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, que
exigia que os hospitais psiquiátricos fossem substituídos por outras formas
de tratamento, capazes de garantir a dignidade e a liberdade das pessoas
com transtorno mental, com base nos seus direitos2. Com o Manifesto de
Bauru, documento da fundação do MNLA, este é identificado enquanto
movimento social, como veio a se confirmar no I Encontro Nacional da Luta
Antimanicomial realizado em Salvador – BA, no ano de 1993.
1 Este artigo traz reflexões desenvolvidas na minha tese de doutorado (UnB, 2018), a partir de
pesquisa realizada com financiamento da CAPES, através do Programa de Doutorado Sanduíche
no Exterior (PDSE).
*Professora adjunta no Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), onde coordena o Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania. Doutora em Di-
reito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (2018). Mestra em Ciências Jurídicas
pela Universidade Federal da Paraíba (2007). Integra o Grupo de Pesquisa O Direito Achado
na Rua (UnB), a Rede de Estudos Empíricos em Direito e o Instituto de Pesquisa Direitos e
Movimentos Sociais (IPDMS). E-mail: ludmila.correia@academico.ufpb.br. Orcid: 0000-0001-
5721-4032.
2 AMARANTE, 1997; 1998.
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Embora se reconheça, atualmente, a existência de vários grupos oriun-
dos do MNLA, sobretudo após as divergências e embates no início dos anos
2000, não é objetivo deste artigo discutir as cisões e as novas correntes e
organizações surgidas nesse percurso histórico – MNLA, RENILA – Rede
Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial, associações de usuários
e familiares etc. No bojo dessa discussão está a discordância radical entre
grupos diversos no que diz respeito à autonomização e à institucionaliza-
ção do Movimento3.
Porém, não posso deixar de fazer esse registro, uma vez que faz parte
da caracterização de um movimento social com tamanha amplitude e in-
serção na luta por políticas públicas de saúde inclusivas, e, sobretudo, com
a participação de atores diversos, com destaque para as pessoas com defi-
ciência psicossocial4. Sendo assim, neste artigo adotarei a denominação
Movimento Antimanicomial (MA) para me referir ao conjunto de grupos,
organizações, núcleos, frentes e coletivos da sociedade civil que têm luta-
do por uma Reforma Psiquiátrica antimanicomial no Brasil, ou seja, que
reivindicam políticas públicas de saúde mental garantidoras de direitos e
baseadas num modelo comunitário e territorial.
Ao enfatizar que as ações e lutas do MA estão direcionadas e impactan-
do as diferentes dimensões da vida social, Luchmann e Rodrigues5 o reafir-
mam como um importante movimento social na sociedade brasileira, uma
vez que se organiza e se articula para transformar as condições, relações e
representações sobre a loucura na sociedade. Dessa forma, o MA passou
a contribuir para a reconstrução da relação da sociedade com a louca e a
loucura, visando a superação do estigma e da desqualificação das pessoas
com deficiência psicossocial. Mais adiante, o Movimento iniciou a discussão
sobre a necessidade de uma Reforma Psiquiátrica no país, na perspectiva da
garantia dos direitos humanos desse grupo subalternizado6.
3 VASCONCELOS, 2012.
4 Tal nomenclatura é adotada neste artigo de acordo com a Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), assimilada pelo Brasil em 2009 com status cons-
titucional, pelo Decreto Federal n. 6.949, de 25 de agosto de 2009 e por documentos da Orga-
nização Mundial de Saúde (OMS, 2013). Entretanto, cabe registrar que na legislação brasileira
de saúde mental, sobretudo nas normativas aqui mencionadas, consta “pessoas com transtornos
mentais”. Nas ocasiões em que a referência for direta, será mantida a denominação original.
5 2007.
6 CORREIA, 2006.
Ludmila Cerqueira Correia
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Este artigo objetiva analisar a mobilização jurídico-política da Luta
Antimanicomial no Brasil dialogando com a questão proposta por Santos7
no texto “Poderá ser o direito emancipatório?” (revisitada pelo mesmo au-
tor8), quando, juntamente com Orlando Andrade, afirma “o potencial
emancipador que o direito pode ter nos diferentes campos, escalas e con-
textos sociais, nos quais se apresenta como um recurso de resistência ou de
luta para as coletividades que lutam pela transformação social”9.
Para tanto, realizo uma revisão teórica, tomando como referencial os
pressupostos teórico-práticos de O Direito Achado na Rua, com a concep-
ção de Direito de Roberto Lyra Filho e de José Geraldo de Sousa Junior,
além dos conceitos do cosmopolitismo subalterno e da globalização con-
tra-hegemônica, a partir das elaborações teóricas de Boaventura de Sousa
Santos. Ademais, procedo a uma análise documental para abordar as prin-
cipais estratégias político-jurídicas utilizadas pelo MA para implementação
dos direitos das pessoas com deficiência psicossocial, como os relatórios
das Conferências Nacionais de Saúde Mental, documentos legislativos, um
livro, um filme, o relatório da I Caravana Nacional de Direitos Humanos, a
sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no julgamento do
caso Damião Ximenes Lopes versus Brasil e a Carta do Encontro de Bauru
– 30 anos.
Partirei da análise da mobilização política e jurídica realizada pelos
atores na luta pelos direitos das pessoas com deficiência psicossocial no
Brasil, em especial, daquela exercida pelo Movimento Antimanicomial e
pelas associações de usuárias e familiares no âmbito da saúde mental. A es-
colha desses atores se justifica pelo fato de se identificarem com as práticas
dos grupos compreendidos por Santos10 no campo do cosmopolitismo su-
balterno ou da globalização contra-hegemônica. Em seguida, analisarei as
7 2003.
8 Esta questão foi apresentada e debatida na palestra intitulada “Pode o Direito ser emancipató-
rio? – Revisitado”, proferida por Boaventura de Sousa Santos na mesa de abertura do 1º Encon-
tro da Seção “Sociologia do Direito e da Justiça” da Associação Portuguesa de Sociologia, no dia
08 de janeiro de 2016, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, na qual estive
presente por ocasião das atividades do meu estágio doutoral realizado naquela universidade,
no Centro de Estudos Sociais. Tal debate faz alusão ao artigo intitulado “Revisitando ‘Poderá o
direito ser emancipatório?’”, publicado em 2015 na Revista Direito e Práxis (ANDRADE; SAN-
TOS, 2015).
9 ANDRADE; SANTOS, 2015, p. 5.
10 2003, 2011.
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