Nulidades Processuais

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas562-589

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1. Considerações propedêuticas

Uma das tarefas mais tormentosas para a doutrina tem sido, sem dúvida, a de estabelecer os limites exatos dos terrenos da nulidade, da anulabilidade e da inexistência dos atos processuais. Muito já se escreveu a respeito do assunto, mas, apesar disso, diversas áreas nebulosas, que envolvem as zonas limítrofes desses terrenos, ainda não foram dissipadas. Como consequência dessa indefinição, subsistem, no espírito de quantos sejam chamados a resolver problemas que digam respeito à validade ou invalidade dos atos processuais, ou à existência ou inexistência destes, hesitações angustiantes que, por sua vez, servem para alimentar as controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais acerca da matéria — controvérsias que, em boa medida, emanam da falta de uma disciplina legal mais eficiente sobre assunto de tamanha relevância prática.

Parecem, por isso, ter sido formulados com vistas à nossa realidade normativa os comentários constantes do Novíssimo Digesto Italiano (verbete “Nullità processuali”), a seguir reproduzidos: “O complexo de normas, através das quais o legislador pretendeu configurar a disciplina das nulidades dos atos processuais civis está longe de exaurir o complexo quadro da matéria: basta lembrar que as regras sobre as nulidades foram formuladas relativamente aos vícios formais e é discutida e discutível a sua aplicabilidade aos vícios de fundo. Esta insuficiência da disciplina normativa é perceptível quando se pensa que o legislador cuidou de regular aspectos até marginais ao regime das nulidades, como a legitimação para levantar o vício do ato, o poder de o juiz renová-lo, etc. Essas disposições apresentam interesse secundário, e o intérprete tem, muitas vezes, que buscar fora do Código solução para problemas mais relevantes, como, v. g., o da inexistência, a que a lei absolutamente não se refere” (destacamos).

O estatuto de processo civil brasileiro dedicou o Capítulo V do Título V (“Atos Processuais”) do Livro I (“Processo de Conhecimento”) às nulidades, procurando regular o correspondente regime em oito artigos (243 a 250). Aí, contudo, são tratadas não somente as nulidades, mas as anulabilidades (caso, e. g., dos arts. 244 e 245, caput), fazendo gerar uma certa confusão na mente de intérpretes desavisados. Dos atos inexistentes nada se diz no mencionado Capítulo. Em suma, a disciplina legal, entre nós, dos regimes da nulidade, da anulabilidade e da inexistência dos atos processuais é insatisfatória, sendo a causa principal das dissensões hoje instaladas na doutrina e na jurisprudência.

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O processo do trabalho, impulsionado por sua ontológica tendência à simplificação (que lhe atribui um aparente caráter de simplicidade), e beirando as raias da simploriedade, cogita das nulidades (e, tão-só, destas) nos arts. 794 a 798.

É curioso observar que, de um lado, a má disciplina legal, como dissemos, tem contribuído para as disputas doutrinárias sobre o tema, e, de outro, que a imprecisão dos conceitos doutrinais tem levado a jurisprudência a desnortear-se, muitas vezes, diante dos casos concretos, ora considerando nulo o que é anulável (e vice-versa), ora declarando nulo o que, na verdade, é inexistente.

Parece-nos indispensável, em razão disso, que se proceda a um adequado acertamento legislativo do assunto, a fim de serem eliminadas, o quanto possível, as controvérsias que, até o momento, vêm atormentando juízes, advogados, membros do Ministério Público, assessores, professores e acadêmicos de Direito e tantos quantos têm sido instados a pronunciar-se a respeito. Enquanto não ocorrer o acertamento normativo preconizado, caberá à doutrina, com sua vocação científica, mourejar nesse campo, não apenas para solucionar, ainda que provisoriamente, o problema, mas para colocar à disposição do legislador os elementos necessários à definitiva pacificação da matéria.

Tentemos, em decorrência disso, fornecer alguns contributos — ainda que, reconhecidamente, modestos — para o atingimento desse objetivo, começando pela enunciação dos conceitos de: a) nulidade; b) anulabilidade e c) inexistência dos atos processuais.

1.1. Conceito de nulidade

Costumam os juristas afirmar, com uma certa entonação dogmática, que ato nulo é o que não produz efeitos jurídicos (quod nullum est nullum producit effectus). Essa definição, embora consagrada, é imperfeita por levar em conta não a natureza, a essência do ato e, sim, a sua consequência, expressa na inaptidão para produzir os efeitos previstos no ordenamento jurídico. Examina-se, aí, em suma, não o elemento interno do ato, o seu conteúdo, mas o seu aspecto meramente externo. Além disso, no plano processual, o ato nulo produz efeitos, enquanto não for invalidado, sendo certo que se submete ao fenômeno jurídico da coisa julgada material, e, decorrido o prazo para o exercício da ação rescisória, torna-se definitivamente convalidado, vale dizer, imutável.

Antes de deitarmos um conceito de nulidade, faz-se recomendável advertir que esta não deve ser confundida com ineficácia, conquanto ambos os vocábulos venham sendo indistintamente empregados por uma doutrina pouco preocupada com os compromissos científicos.

A nulidade, como diz Teresa Arruda Alvim Pinto, “é o estado em que se encontra um ato, que lhe torna passível de deixar de produzir seus efeitos próprios e, em alguns casos, destroem-se os já produzidos” (Nulidade da Sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.
p. 62-63). A ineficácia, por seu turno, significa a inaptidão para a produção dos efeitos jurídicos inerentes ao ato processual. Sob esse ângulo, fica possível compreender-se a existência de atos que, embora válidos, sejam ineficazes, ou seja, não têm aptidão para

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produzir os efeitos pretendidos. Uma sentença condenatória, por exemplo, da qual se tenha interposto recurso, a despeito de ser um ato formalmente válido, só terá eficácia de título executivo (execução definitiva) depois de julgado o recurso e desde que o tribunal negue provimento a este. Em outra obra, aliás, pudemos manifestar a opinião de que a sentença passível de recurso (não a que já tenha sido objeto de impugnação, por essa via) é ato condicionado, ou melhor, que pende de condição suspensiva, isto porque, embora dotada de todos os requisitos legais para a sua validade, encontra-se tolhida em sua eficácia. Concluímos, asseverando que dita suspensividade permanecerá enquanto perdurar a possibilidade de impugnar-se a sentença, o que corresponde a afirmar, de outro ponto de observação, que os seus efeitos somente serão liberados assim que ficar afastada, em definitivo, a possibilidade de recurso.

Definidas, por esse modo, os lindes da anulabilidade e da ineficácia, podemos conceituar o ato nulo, em sentido amplo, como o que tem existência em desacordo com a lei e cuja invalidade pode ser alegada pelas partes, a qualquer tempo, ou decretada, ex officio, pelo juiz, não podendo, em princípio, ser ratificado e não sendo apto para gerar preclusão. A ineficácia do ato decorrerá do seu decreto jurisdicional de nulidade.

Como se pode notar, o conceito que acabamos de esboçar se calca no elemento existência, que reputamos essencial para diferenciar o ato nulo do inexistente. É certo que esse existir se vale para separar o ato nulo do inexistente, não serve para desassemelhá-lo do ato anulável, uma vez que este também existe. Por ora, fiquemos com o conceito formulado, que, segundo pensamos, será melhor entendido quando elaborarmos o de ato anulável, o que será feito mais adiante.

Assim como Galeno Lacerda, julgamos que o traço característico dos sistemas das nulidades processuais reside na natureza da norma desrespeitada, considerada em seu aspecto finalístico. Desse modo, se a norma reflete predominante interesse público, a sua violação acarreta a nulidade (absoluta) do ato infringente (Despacho Saneador. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1953. p. 72). Esse critério, se não é eficiente para resolver, por inteiro, o problema das nulidades, é, a nosso ver, o que de melhor se tem, pois não se pode negar que se o Estado, por meio de determinada norma, tutela um interesse público, será nulo o ato que a transgredir. Sabe-se, por outro lado, que as partes não têm poder de disposição sobre as normas dessa natureza. É imperativo chamarmos a atenção para o fato de que, mesmo sendo o Estado um dos litigantes, ele não poderá dispor da norma de ordem pública, considerando que, para esse fim, fica equiparado ao particular.

1.2. Conceito de anulabilidade

Assim como os atos nulos, os anuláveis têm existência em desacordo com a lei. A nota distintiva, contudo, entre ambos, fica por conta do fato de que os atos anuláveis não podem ser decretados ex officio, sendo indispensável, para tanto, a iniciativa do interessado, exceto se este deu causa à contaminação do ato. Aqui há, quase sempre, preclusão (temporal) e, também, possibilidade de convalidação.

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Afirmamos, há pouco, que haverá nulidade sempre que o ato violado espelhar um interesse público. Podemos aproveitar essa mesma linha de raciocínio para dizer, agora, que existirá anulabilidade (ou nulidade relativa) quando o ato infringido tutelar interesse que diga respeito, essencialmente, às partes.

Mais além, iremos empreender um exame detalhado do texto do CPC, com o objetivo...

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