A ofensiva neoliberal ao direito da antidiscriminação: a expansão da liberdade protegida no Supremo Tribunal Federal e na Suprema Corte dos EUA/The neoliberal offensive to anti-discrimination law: the expansion of protected freedom in the Brazilian Federal Supreme Court and the US Supreme Court.

AutorRios, Roger Raupp

1 Introdução

Os cenários polÃÂtico e jurÃÂdico brasileiro e estadunidense revelam, de modo exemplar, algumas das estratégias que o neoliberalismo (1), mundo afora (HARVEY: 2008), tem mobilizado em suas investidas contra as reivindicações por igualdade e, particularmente, contra o Direito da Antidiscriminação. Desde o desmantelamento do Estado Social ou de seu desenho nos paÃÂses dependentes, outrora um dos pilares da estrutura das democracias no século XX (MELLO; CALDAS; GEDIEL, 2019), passando pela substituição do ideal da cidadania pelo projeto da sociedade e do indivÃÂduo a partir da "forma empresa" (FOUCAULT, 2010), até o presente rechaço às polÃÂticas antidiscriminatórias, vivem-se tempos em que a desigualdade é celebrada como modo de vida (GOUDARZI; BADAAN; KNOWLES, 2022) e a inimizade marca o convÃÂvio social (MBEMBE, 2020, p. 75).

Neste contexto, não surpreende que as medidas visando ao enfrentamento das desigualdades, seja na arena do orçamento público e das polÃÂticas sociais, seja no campo judicial, constem dentre os alvos prediletos da ofensiva neoliberal. Na prática do direito e em sua elaboração teórica, esta ofensiva mira, de modo particular, o Direito da Antidiscriminação, que afirma e desenvolve, como disciplina cientÃÂfica e como experiência de luta pela igualdade, a afirmação do mandamento antidiscriminatório como conteúdo fundamental do direito de igualdade (RIOS, 2008).

Uma das mais vigorosas e bem sucedidas estratégias nestas invectivas antiigualitárias é o apelo àproteção de uma esfera pessoal intocável, cuja manifestação jurÃÂdica residiria nos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de religião; em nome de sua defesa, busca-se não só invalidar as medidas antidiscriminatórias existentes; mais ainda, pretende-se legitimar a desigualdade e a discriminação crescentes.

Tendo isso presente, este artigo toma a ofensiva neoliberal sobre o direito antidiscriminatório como objeto (2) e se propõe a analisar a propalada expansão da proteção da esfera pessoal intocável promovida pelo neoliberalismo (primeira parte), para, a partir daÃÂ, fazer avançar a compreensão de recentes e emblemáticos julgados do Supremo Tribunal Federal do Brasil e da Suprema Corte dos Estados Unidos no âmbito do direito antidiscriminatório (segunda parte). Para tanto, problematiza-se por que o neoliberalismo ataca o direito antidiscriminatório, a partir de revisão bibliográfica da literatura especializada, fundamentalmente, a leitura de Wendy Brown sobre o neoliberalismo, para, em seguida, examinar julgados brasileiros que invalidaram leis estaduais proibitivas de questões de gênero no âmbito escolar e decisões estadunidenses legitimaram a recusa de serviços motivada pela orientação sexual dos clientes.

2 Descartáveis e protegidos: a gramática de direitos sob o neoliberalismo

Wendy Brown (2016), em um exercÃÂcio de reflexão sobre os marcos teóricos que orientam sua leitura sobre o neoliberalismo, afirma defender um "trabalho de margem" entre duas perspectivas crÃÂticas àausteridade, quais sejam, a marxista e a foucaultiana. Esta seção colhe elementos das duas tradições, em especial sobre a relação entre neoliberalismo e neoconservadorismo, para destacar como a disputa em torno dos sentidos da liberdade conjuga mercantilização e descartabilidade do humano, por um lado, e valorização do sujeito como instância pessoal protegida, por outro. As polÃÂticas neoliberais, de cunho neoconservador, servem-se dessa expansão, de forma indevida, o que nos leva àproblematização teórica (seção 2) e àanálise documental (seção 3).

O neoliberalismo amplia a aplicação da lógica mercantil às decisões polÃÂticas e sociais a respeito da polÃÂtica social e dos direitos fundamentais. Cria, para tanto, seu próprio regime de direitos neoliberais, legislativa e judicialmente. Para fazer avançar seu projeto de restauração do poder de classe, no entanto, setores neoliberais têm desacordo entre si, no que diz respeito àatribuição de natureza mercantil àsexualidade, àcultura, a sÃÂmbolos religiosos e àhistória etc., como também na atribuição de direitos de propriedade e obtenção de renda nesses campos da existência humana.

Até que ponto é possÃÂvel mercantilizar, consumir e obter renda a partir de cultura, religiosidade, sexualidade e do corpo do sujeito trabalhador são temas que desafiam os sentidos da liberdade propostos por liberais e neoliberais. O limite a ser traçado nessas temáticas, para David Harvey (2008), fundamenta em parte a divergência entre neoliberalismo e neoconservadorismo, o que permite compreender as direitas contemporâneas em sua atuação contrária ao direito antidiscriminatório, objeto desse artigo.

Uma primeira forma de interpretar processos sociais de produção e resposta ao neoliberalismo, de matriz marxista, revela dimensões do neoliberalismo no seu movimento de restauração do poder das classes dominantes, em especial por meio da acumulação flexÃÂvel ou acumulação por espoliação, e na sua interação com o senso comum (HARVEY, 2008).

Este poder de classe pode ser visÃÂvel e invisÃÂvel, diferencia Wendy Brown (2016). O modelo de interpretação hegelo-marxista, para a autora, é aquele que trabalha com a diferenciação entre essência e aparência e, na negação do falso real, busca realizar movimentos de abstração, estabelecendo aproximações e conexões entre o objeto e a totalidade, com mediações e contradições. Essa tradição teria como objetivo revelar a restauração desse poder de classe em categorias heurÃÂsticas explicativas, por exemplo, da relação entre classes sociais, financeirização e cultura. A perspectiva de Foucault, por outro lado, teria como foco o exame da manifestação do poder neoliberal em nossa época, na moldagem de subjetividades e na internalização de modos de ser e de agir.

A diferenciação didática entre visÃÂvel e invisÃÂvel é pertinente para observar dimensões do neoliberalismo. Entretanto, parece equivocado afirmar que autores da tradição marxista, como David Harvey (2008), realizam apenas exame de um poder invisÃÂvel. Certamente, problematizam e discutem também seus efeitos e interações com subjetividades, na relação entre polÃÂticas neoliberais, bom senso e senso comum, movimentos sociais e sua relação com a exploração e as espoliações, entre outros temas.

Não é possÃÂvel discutir as demandas de reconhecimento, entre elas aquelas relacionadas ao direito antidiscriminatório, sem levar em consideração a situação polÃÂtica mais geral da correlação de forças entre as classes sociais, recuperando categorias da tradição hegelo-marxista do pensamento polÃÂtico, como destacam Nancy Fraser e Rael Jaeggi (2020). Assim, pensar a relação entre igualdade e discriminação no contexto da crise do sistema sociometabólico do capital encontra no exame das ideias e polÃÂticas neoliberais fonte essencial.

O centro das ideias neoliberais são os direitos de propriedade e o princÃÂpio da desigualdade. Alteram-se noções de liberdade, indivÃÂduo, sujeito, liberdade de expressão, relações entre setor público e privado, bem como a noção de coletivo. A caracterÃÂstica que transpassa todos os temas é a subordinação da reprodução econômica e social àfinanceirização, com a transferência da capacidade de alocação do fundo público, dos Estados nacionais para instituições públicas e privadas com sede nos Estados Unidos (Saad Filho, 2023, p. 24 e 25).

As tarefas primordiais de acadêmicos, empresários, jornalistas e ativistas neoliberais, na leitura de Brown, envolvem "habilitar o mercado e a moral para governar e disciplinar indivÃÂduos, ao mesmo tempo maximizando a liberdade" (Brown, 2019, p. 21) (3). Não se trata do capitalismo de "livre mercado", mas de "criar e sustentar uma ordem ampliada", pela ação conjunta entre moral e mercado. Este hibridismo entre neoliberalismo e neoconservadorismo resultaria em um movimento de "desdemocratização", segundo Brown (2019, p. 111 e 112).

O regime de direitos neoliberais, como destaca Harvey (2008), é atraente e contraditório. Compõem esse regime de direitos o estÃÂmulo àresponsabilidade individual, a igualdade de oportunidades no mercado e perante a lei, as recompensas àiniciativa e àatividade empreendedora, o estÃÂmulo ao cuidado de si mesmo e dos seus, a expansão da liberdade de escolha em termos de contrato e troca, o direito àpropriedade privada do próprio corpo, bem como a liberdade de pensamento, expressão e manifestação (HARVEY, 2008, p. 195)

A construção de um marco legal neoliberal se serve de um discurso falso de retirada do Estado, como propaganda no sentido de que o Estado seria ineficiente e reduzido, retirado da vida social (SAAD FILHO, 2023; HARVEY, 2008). Na verdade, o Estado neoliberal é intervencionista de uma forma particular: legitima o neoliberalismo no domÃÂnio ideológico e transfere para as finanças o controle sobre fontes do capital ou sobre o fundo público (SAAD FILHO, 2023, p. 27).

O Estado forte se relaciona com a financeirização da reprodução social. O crescente pagamento por saúde, educação e seguridade faz com que o endividamento das famÃÂlias se acumule, disciplinando as pessoas que trabalham, para que tenham de trabalhar mais horas, em vários...

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