Online courts: Um modelo a considerar no sistema português?

AutorLurdes Varregoso Mesquita
CargoDoutora em Direito; Professora Auxiliar da Universidade Portucalense; Professora Adjunta Convidada da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico do Porto; Investigadora do Instituto Jurídico Portucalense. Porto, Portugal.
Páginas173-206
Revista Eletrônica de Direito Processual REDP. Estrato A2 Qualis.
Rio de Janeiro. Ano 17. Volume 24. Número 2. Maio a Agosto de 2023
Periódico Quadrimestral da Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ
Patrono: José Carlos Barbosa Moreira (in mem.). ISSN 1982-7636. pp. 173-206
www.redp.uerj.br
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
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ONLINE COURTS: UM MODELO A CONSIDERAR NO SISTEMA
PORTUGUÊS?1-2
ONLINE COURTS: IS IT A MODEL TO CONSIDER IN THE PORTUGUESE
SYSTEM?
Lurdes Varregoso Mesquita3
RESUMO: No contexto da quarta revolução industrial (4.0), em que a inteligência artificial e a tecnologia
autónoma influenciam, inevitavelmente, a administração da justiça, é o momento para q uestionar a
aplicação do novo paradigma da smart justice no ordenamento português, através da criação de tribunais
em linha para a resolução de litígios internos. No plano europeu, atendendo à Estratégia de Justiça
Eletrónica para 2019-2023 (2019/C 96/04) e ao Plano de acção para a justiça eletrónica europeia para 2019-
2023 (2019/C 96/05), o reforço da resolução de litígios em linha está perfeitamente integrado nas linhas
gerais do quadro europeu da e-justice, o que deve motivar os Estados-Memb ros a reflectir sobre esta
temática. Partindo do enquadramento tecnológico e p olítico actual, favorável à discussão das implicações
de uma justiça algoritmizada, e considerando modelos já existentes em ordenamentos estrangeiros, o
presente estudo visa: i) analisar os modelos existentes de tribunais em linha, na perspectiva da sua evolução
de sistemas privados para sistemas públicas; ii) descrever os mecanismos de resolução de litígios em linha,
enquanto sistemas multiportas, que conjugam meios autocompositivos e heterocompostivos de resolução
de litígios; iii) avaliar as fragilidades de um sistema público de on line dispute resolution (ODR), que inclua
uma vertente heterocompositiva vinculativa, assim como a sua conformidade com os princípios
fundamentais de Direito Processual Civil; iv) equacionar a necessidade de um due pr ocess tecnológico; v)
considerar a possibilidade de implementação de uma experiência piloto no ordenamento português,
circunscrita à resolução de litígios relacionados com determinadas matérias e associada à desterritorialidade
dos julgados de paz. A análise destas temáticas contribuirá para promover a implementação de mecanismos
que permitam a prevenção de litígios, contribuam para a sua resolução pela via consensual e privileg iem o
acesso à justiça, sem que, no entanto, se deixem de assegurar as garantias processuais fundamentais,
procurando uma solução de compromisso e equilíbrio.
PALAVRAS-CHAVE: inteligência artificial; tecnologia; smar t justice; Tribunais em linha; devido
processo legal tecnológico.
1 Artigo recebido em 10/05/2023, sob dispensa de revisão.
2 O artigo “Online Courts: um modelo a considerar no sistema português?” foi publicado na seguinte obra:
F. Andrade, M. Gonçalves, & R. M. Cruz (Coords.), Atas do Congresso Inter nacional Meios de Resolução
Alternativa de Litígios Online, Universidade do Minho, Escola de Direito (ED), 2022, pp. 427-468. ISBN:
9789895334223.
3 Doutora em Direito; Professora Auxiliar da Universidade Portucalense; Professora Adjunta Convidada da
Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico do Porto; Investigadora do Instituto
Jurídico Portucalense. Porto, Portugal. E-mail: lvm@upt.pt
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ABSTRACT: Within the context of the fourth industrial revolution (4.0), as artificial intelligence and
autonomous technology inevitably influence the administration of justice, now would be the time to
question the application of the new paradigm of smart justice in the Portuguese legal system, by creating
online courts for the resolution of domestic disputes. Regarding the European e-Justice Strategy for 2019-
2023 (2019/C 96/04) and the European e -Justice Action Plan for 2019-2023 (2019/C 96/05), the
strengthening of online dispute resolution is perfectly integrated in the guidelines of the European e-Justice
framework, and should motivate Member States to refl ect on this issue. Considering the current
technological and political environment, favorable to the discuss ion of the implications of an algorithmic
justice, and taking into account models that already exist in foreign legal systems, this study aims to: i)
analyse existing models of online courts, in the perspective of their evolution from private to public systems;
ii) describe the mechanisms of online dispute resolution, as multi -door systems, which combine self-
compositive and heterocompositive method s of dispute resolution iii) evaluate the weaknesses of a public
system of on line dispute resolution (ODR), incorporating a binding heterocompositive component, as well
as its compliance with the fundamental principles of Civil Procedural Law; iv) consider that a technological
due process is necessary; v) discuss the possibility of implementing a preliminary experiment in the
Portuguese legal system, restricted to the resolution of disputes related to certain matters and associated
with the absence of territoriality of the Courts of Peace. The analysis of these issues will contribute to
promote the implementation of mechanisms that allow the prevention of disputes, contribute to their
resolution by consensus and promote access to justice, without, however, fail to ensure the fundamental
procedural guarantees, aiming for a balance and compromise solution.
KEYWORDS: artificial intelligence; technology; smart justice; online courts; technological due p rocess.
1. DIGITALIZAÇÃO E ALGORITMIZAÇÃO O PARADIGMA DA PÓS-
MODERNIDADE NA VIDA E NA JUSTIÇA
1.1 Enquadramento
A terceira revolução industrial (indústria 3.0), iniciada a partir da década de 50 do
século XX, está associada ao desenvolvimento digital e à internet, tendo dado lugar à
automatização industrial. Não obstante este ter sido considerado já um grande passo na
nossa evolução, em especial no que diz respeito às comunicações, o contínuo
desenvolvimento tecnológico e científico deu lugar a uma nova etapa: a indústria 4.0 ou
quarta revolução industrial4.
4 Sobre as várias etapas da revolução industrial, ver BARONA VILAR, Silvia, Algoritmización del Derecho
y de la Justicia . De la Inteligencia Artificial a la Smart J ustice, Tirant lo Blanch, 2021, pp. 42-76.
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A indústria 4.05 é uma fase da industrialização em que os processos utilizados
combinam digitalização, conectividade, automatização, robotização e inteligência
artificial6. Nela aparecem, com especial relevo, a Internet das Coisas (Inter net of Things
- IoT) que liga os objectos físicos do quotidiano à internet e o Big Data, que consiste
na recolha, acumulação e análise de grandes quantidades de dados, associado à
Computação em Nuvem (Cloud Computing).
Esta nova realidade tem repercussões a vários níveis. Em primeira linha, o que se
pretende é alterar os processos de produção, criar mais e melhor capacidade produtiva,
com uma rentabilidade superior. Por isso, as implicações no tecido económico são
naturais, reclamando uma redobrada atenção à capacidade de adaptação do capital
humano e à salvaguarda das garantias laborais. Mas é inquestionável a sua influência em
todos os segmentos da vida, designadamente o social, o cultural, o político e o jurídico.
A revolução industrial equipara-se a uma verdadeira revolução vital, na medida em que
provoca uma forma diferente de olhar e uma forma diferente de nos apresentarmos à
sociedade e ao mundo, agora encarado na perspectiva da globalização, alterando espaços,
valores e, sobretudo, a sociedade, os costumes e a própria vida7.
Por outro lado, é inegável o impacto positivo, mas também negativo, deste
desenvolvimento, cujos riscos de enviesamento na sua utilização constituem uma ameaça
constante. Como dizia HOBBES, “[h]á poucas coisas neste mundo em que o bem e o mal
não estejam misturados, ou em que não haja uma cadeia de bem e mal tão necessariamente
unidos que um não pode ser tomado sem o outro. Por exemplo: os prazeres do pecado e
a amargura da punição são inseparáveis; como também são inseparáveis, para a maioria,
o trabalho e a honra. Agora, quando na totalidade da cadeia o bem é a maior parte, chama-
se ao todo um bem; e quando é o mal que pesa mais, chama-se ao todo um mal”8. Ora, é
5 Este termo é utilizado pela p rimeira vez na Alemanha, em 2011, pelo Presidente da Academia Alemã de
Ciência e Engenhar ia (Acatech), Henning Kagermann, a propósito de um projecto estratégico de alta
tecnologia que visava a criação de uma fábrica inteligente, ou seja, uma Ciberfábrica. Cfr. Idem, ibidem, p.
58.
6 Idem, Ibidem.
7 Assim nos alerta BARONA VILAR, em “Inteligencia Artificial o la Algoritmización de la Vida y de la
Justicia: ¿Solución o Problema?”, Revista Boliviana de Derecho, n.º 2 8, julho, 2019, p. 24.
8 HOBBES, Thomas, A Natureza Humana, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1983, p. 96.

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