Pachukanis, Lukács e Postone: um contraste entre concepções de uma sociedade pós-capitalista/Pashukanis, Lukács and Postone: a contrast between conceptions of a post-capitalist society.

AutorVaz, André

1) Introdução

Não há dúvida de que a monumental obra de Marx--que contém inflexões, aperfeiçoamentos e retrocessos--fundamenta o marxismo enquanto campo aberto, em que se disputam interpretações, orientações e perspectivas. Porém, por mais que dela se possa derivar uma série quase infinita de enfoques e desdobramentos, certo é que a análise de Marx versa sobre o modo de produção capitalista, além de veicular a crÃÂtica mais arrasadora das determinações mais fundamentais dessa sociabilidade. Por outro lado, justamente porque a crÃÂtica inevitavelmente pretende demonstrar a desumanidade (1) de tal formação social per se e apontar para sua superação, é legÃÂtima a indagação sobre a medida em que é possÃÂvel delinear, a partir dela, as determinações de uma futura sociedade pós-capitalista. Este artigo tem por objetivo geral debater algumas concepções especÃÂficas sobre uma sociedade emancipada. Isso será empreendido, em especÃÂfico, mediante destaque de algumas concepções de uma conhecida teorização sobre o ponto, a saber, a de Evguiéni Pachukanis, sobretudo a registrada em sua principal e impactante obra Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tais concepções serão contrastadas especificamente com as visões de Georg Lukács e Moishe Postone. Expostas as insuficiências da proposta de Pachukanis, será possÃÂvel demonstrar a superioridade analÃÂtica destas últimas. Ao fim, procederei a breve cotejo com outras formulações próximas às de Pachukanis, como as de Lenin e do próprio Marx.

2) Pachukanis: abolição do direito, regulamentação técnica e fusão do "eu" individual com o coletivo

O jurista soviético Evguiéni Pachukanis pode ser apontado como um dos mais brilhantes teóricos do direito que refletiram sobre a esfera jurÃÂdica da vida social àluz do marxismo. Suas contribuições são capazes de até hoje impressionar pela sofisticação, sobretudo porque apresentadas ainda no inÃÂcio do século XX, ou seja, numa quadra em que ainda muito haveria de se percorrer em termos de desenvolvimento do capitalismo: ao longo das décadas, explicitaram-se dinâmicas cujas tendências ainda não eram manifestas em estágios pretéritos, de modo que, mediante análises retroativas, pôde-se verificar desde então um enorme amadurecimento das ciências sociais.

Para os fins que nos interessam, é dispensável apresentar todo o arcabouço teórico de Pachukanis, que é inclusive marcado por retrocessos e retratações relacionadas, ao que tudo indica, aos rumos que a União Soviética tomou após a ascensão de Stalin e que, também muito provavelmente, culminaram no desaparecimento do próprio jurista. A análise será limitada, portanto, ao que se pode extrair da concepção pachukaniana sobre uma sociedade comunista tal como exposta no seu principal livro, Teoria geral do direito e marxismo (2). (PACHUKANIS, 2017)

A posição central de Pachukanis, por ele mais reiterada e decididamente defendida, é bastante conhecida: o direito constitui uma forma social historicamente especÃÂfica da sociedade capitalista e é dela indissociável. Se é assim, uma vez superado esse modo de produção, necessariamente será abolida a forma jurÃÂdica. Numa sociedade mercantil, os indivÃÂduos confrontam-se enquanto possuidores de mercadorias, e a partir dessa relação econômica erige-se a estrutura jurÃÂdica, cujo elemento mais básico é o sujeito de direito--expressão jurÃÂdica daquele possuidor. Todo o direito--tanto que "[a] diferenciação entre o direito público e o direito privado já apresenta (...) dificuldades especÃÂficas" (PACHUKANIS, 2017, p. 111)--é fundamentalmente moldado por essa determinação, pois ele assegura seja observada a relação de equivalência que deve reger a troca mercantil. No que se refere especificamente àtroca da mercadoria força de trabalho, a forma jurÃÂdica contratual que a medeia garante a exploração de uma classe por outra:

O servo está em uma situação de completa subordinação ao senhor justamente porque essa relação de exploração não exige uma formulação jurÃÂdica particular. O trabalhador assalariado surge no mercado como um livre vendedor de sua força de trabalho porque a relação capitalista de exploração é mediada pela forma jurÃÂdica do contrato. Acredita-se que esses exemplos sejam suficientes para se admitir o significado decisivo da categoria de sujeito para a análise da forma jurÃÂdica. (PACHUKANIS, 2017, p. 118) Portanto, eliminada a forma social mercantil por meio do planejamento da produção, e encerrada a relação de exploração pela vitória revolucionária do proletariado, o direito necessariamente seria abolido, descabendo falar-se num direito comunista: não se pode lançar mão da forma jurÃÂdica, intrinsicamente vinculada àformação social burguesa, para veicular um conteúdo de classe proletário (cf. PACHUKANIS, 2017, p. 79).

Por outro lado, numa sociedade emancipada, a vida social deveria, naturalmente, seguir organizando-se de algum modo. Se a forma jurÃÂdica, que não é trans-histórica, haveria de ser extinta quando revolucionada a esfera da produção, é razoável perquirir a forma pela qual se daria referida organização. Uma vez que não haveria mais uma oposição de interesses egoÃÂsticos própria dos possuidores de mercadoria, Pachukanis entende que seria suficiente uma regulamentação técnica. Ausentes litÃÂgios nas relações humanas, não seriam necessárias as abstrações próprias do direito burguês, tal como o sujeito de direito, pois os interesses seriam sempre convergentes. As ilustrações que Pachukanis oferece a fim de esclarecer o sentido de sua proposição são, como ocorre já no modo de produção capitalista, a definição dos horários de partida ou da capacidade máxima de carregamento dos trens, ou mesmo as regras para a cura de uma doença: em todos os casos, as obrigações que surgem para os envolvidos (passageiros, maquinistas, médicos, pacientes) não decorrem do confronto, mas da unidade dos interesses (2017, p. 94). No que se refere àprodução material da vida, Pachukanis também entende que a necessária eliminação da mediação da concorrência no mercado conduziria a que as unidades produtivas (atuais empresas do modo de produção capitalista, mas então despidas de personalidade, já que caduca a forma jurÃÂdica) também tenham suas atividades coordenadas não pelo direito, mas de maneira técnica (2017, p. 139) (3).

Tal unidade--e este é último ponto que precisamos sumarizar aqui--se verifica no comunismo porque, na base da abolição das classes, da exploração, da propriedade privada, do mercado, do Estado e do direito, opera uma determinada dinâmica de cunho mais abstrato. Em digressão não mais estritamente jurÃÂdico-polÃÂtica, mas propriamente filosófica, Pachukanis diagnostica que a revolução comunista leva ao apagamento das fronteiras entre o individual e o coletivo, pondo fim inclusive àesfera moral:

Se os laços vivos que ligam o indivÃÂduo àclasse são de fato tão fortes a ponto de as fronteiras do "eu" se apagarem e a utilidade de classe realmente se funde com a utilidade pessoal, então não tem sentido falar em cumprimento do dever moral, uma vez que o fenômeno moral geral está ausente (PACHUKANIS, 2017, p. 159). 3) Uma concepção autoritária?

Neste ponto, pretendo apresentar uma crÃÂtica a tal argumento de Pachukanis, tecida por Andreas Arndt (2017), com a qual tem algum acordo, por exemplo, Ingo Elbe (2019). Em suma, ambos os autores, de formação filosófica, defendem que Pachukanis teria nessa área se valido de uma sustentação pouco sólida, o que atraiu um caráter autoritário às consequências de seu raciocÃÂnio.

Arndt parte da consideração de que Pachukanis constrói sua crÃÂtica àforma jurÃÂdica a partir do modelo do direito civil, que regula os conflitos de interesses verificados nas trocas entre possuidores de mercadorias isolados e egoÃÂstas. O sujeito de direito, resultante de um processo de abstração, seria dotado de liberdade segundo a teoria jurÃÂdica burguesa, mas essa liberdade significaria nada além do poder de disposição das mercadorias no mercado (PACHUKANIS, 2017, p. 155). Uma formulação que o jurista invoca para demonstrar sua tese é o imperativo jurÃÂdico hegeliano, que postula: "sê uma pessoa e respeite os outros como pessoa". Para Pachukanis, é tarefa do marxismo preencher de conteúdo histórico essa proposição abstrata, e por isso ele insiste que a pessoa aàreferida é, na verdade, tão-somente o possuidor de mercadorias concreto, que deve respeitar os demais enquanto também possuidores de mercadorias (PACHUKANIS, 2017, pp. 118-119).

A crÃÂtica então é que, por um lado, Pachukanis acertadamente vislumbraria o papel do valor (4) na determinação das relações humanas, o que de fato não pode deixar de servir como vetor interpretativo da colocação de Hegel: o filósofo, que persegue e consegue captar intuitivamente diversas determinações da sociedade de seu tempo (5), sem dúvida tem em vista--talvez inclusive como momento predominante do conceito--o possuidor de mercadorias. Todavia, prossegue Arndt, seria por outro lado reducionista entender que o sujeito de direito em Hegel expressa apenas isso. Para ele, tal categoria hegeliana captura a inauguraçÃ...

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