O Papel dos Juristas na Luta contra Ameaças Autoritárias no Brasil/The Role of Jurists in the Fight against Authoritarian Threats in Brazil.

AutorRodriguez, José Rodrigo

Introdução

O objetivo deste texto é, a partir da literatura que vem sendo produzida sobre o assunto, compreender as atuais ameaças ao nosso estado democrático de direito e identificar a sua eventual base de apoio na sociedade. Uma base de apoio que, aparentemente, está sendo recrutada entre novos personagens que entraram na cena de democrática nos últimos anos. Insatisfeitos com o seu lugar no debate institucional, estes agentes sociais estão questionando os termos nos quais a disputa polÃÂtica e os debates jurÃÂdicos têm sido travados até agora. O texto irá propor uma postura para os juristas em face de ameaças autoritárias, concentrando sua análise em juristas democráticos, pessoas interessadas em defender o estado democrático de direito.

A primeira parte do texto apresenta o modelo teórico que será utilizado na análise da situação do paÃÂs, desenvolvida na segunda parte. Argumentaremos que o surgimento de novas demandas sociais desestabiliza o status quo polÃÂtico-jurÃÂdico, pois propõe uma nova distribuição de recursos materiais e recursos simbólicos. Esta desestabilização pode resultar em estratégias articuladas no campo da luta por direitos, ou seja, no processo de intepretação e aplicação das leis, ou no campo das utopias radicais ou institucionais, que trata de propostas de profunda transformação institucional.

Esta parte do texto termina discutindo a possibilidade ou não de promover transformações radicais por meio da luta por direitos, tema importante para avaliar a relação dos juristas e do pensamento jurÃÂdico com a atual conjuntura. Trata-se de saber se transformações radicais podem ser implementadas pela transformação das instituições atuais, passando pela atuação dos juristas, ou se necessariamente elas precisam ser implementadas por uma ruptura institucional radical que busque reconstruÃÂ-las a partir do zero.

A seguir, o texto sustenta que durante o Governo Bolsonaro havia um grupo extremista atuando no Brasil que ocupava altos cargos no governo federal e que praticou diversos ataques claros às instituições democráticas, motivo de um inquérito conduzido pelo Supremo Tribunal Federal. O texto argumenta também que este grupo adotou a estratégia de promover um stress institucional constante com a finalidade de convencer a população que a única saÃÂda para os problemas do paÃÂs seria a ruptura institucional radical com a instauração de um regime de força contra a atual dinâmica da luta por direitos, projeto que tentou ser efetivado dia 08 de janeiro de 2023.

Tal estratégia aproveita-se dos preconceitos e incompreensões dirigidos àcomunidade evangélica por parte da classe polÃÂtica e da sociedade, especialmente àesquerda, como ficou evidenciado nas campanhas de Marcelo Freixo para a Prefeitura do Rio e de Fernando Haddad para a Presidência da República. Ademais, este grupo extremista apelou também para os movimentos anticorrupção ao construir uma narrativa segundo a qual o desfecho necessário do combate àcorrupção seria a instauração de um regime de força capaz de limpar o paÃÂs de uma vez por todas.

Estas estratégias foram articuladas pela alegação de que um Presidente legitimamente eleito, Jair Bolsonaro, estaria sendo impedido de governar o paÃÂs pelas instituições, deste ponto de vista, falsamente democráticas que o elegeram. Para usar os termos da primeira parte, o texto sustenta que este grupo extremista procuro efetivar utopia radical que procura demonstrar que a luta por direitos seria completamente incapaz de satisfazer as demandas da comunidade evangélica e dos movimentos anticorrupção, entre outras forças: a ruptura institucional seria a única saÃÂda possÃÂvel.

Em sua parte final, o texto propõe que o papel dos juristas democráticos nesta conjuntura é trabalhar no plano da luta por direitos para demonstrar a sua capacidade de acolher as demandas sociais desses novos personagens, ajudando assim a desarmar o argumento da inevitabilidade da ruptura institucional. Trata-se, em uma palavra, de tentar neutralizar argumentativamente os extremistas.

Além disso, cabe também aos juristas ajudar a conceber e construir novas instituições capazes de dar conta de nossos problemas polÃÂticos e jurÃÂdicos, mas sem deixar de mostrar como tais transformações poderiam ser implementadas a partir das instituições atualmente em funcionamento. Daàa ideia da construção de utopias institucionais que proponham transformações a partir de elementos que já se encontram presentes nas atuais instituições.

O texto argumenta que este trabalho passa por uma reformulação da maneira como o direito lida com a religião e com a comunidade evangélica, o que exigirá a reelaboração de categorias dogmáticas e uma reflexão sobre o enquadramento de nossos problemas polÃÂticos e jurÃÂdicos. Por exemplo, estudos recentes mostram que o STF se refere àreligião em geral, muitas vezes, utilizando-se de argumentos negativos de senso comum. Ademais, este tribunal pouco tematiza as demandas da comunidade evangélica. Religião para o STF quase sempre é sinônimo de catolicismo.

Além disso, algumas manifestações religiosas poderiam receber um reconhecimento mais adequado de sua especificidade pelas instituições formais se fossem consideradas como ordens normativas autônomas. Assim, seus conflitos com algumas normas jurÃÂdicas postas deixariam de ser tratadas, por exemplo, com a utilização da categoria conflito entre direitos (liberdade de religião versus integridade fÃÂsica por exemplo, nos casos que envolvem Testemunhas de Jeová), e passariam a ser tratadas como conflitos entre direitos de mesma hierarquia, os quais deveriam ser solucionados por regras a respeito de conflitos de normas.

O texto argumenta também ser necessário que o Sistema de Justiça siga demonstrando que é capaz de combater a corrupção no paÃÂs, superando os erros cometidos pela Lava-jato e valorizando as suas conquistas com a finalidade de construir referências institucionais mais sólidas no combate àcorrupção que não girem em torno da personalidade de determinados servidores públicos. Tal construção, provavelmente, exigirá a criação de novos desenhos para instituições como o Ministério Público Federal que deve partir do diagnóstico que aponta para sua imensa discricionariedade sem controle social.

Finalmente, a tarefa dos juristas em face de ameaças autoritárias é refletir sobre a relação entre direito e democracia para procurar demonstrar a importância do estado democrático de direito para a regulação de sociedade complexas e plurais. Para que isso seja possÃÂvel, é necessário ampliar a abordagem de temas classicamente estudados pela Filosofia do Direito, campo que tem perdido espaço para abordagens céticas em relação ao valor da democracia que se autodenominam Teoria do Direito ou para abordagens crÃÂticas ao direito que tendem a privilegiar o debate sobre utopias radicais, deixando completamente de lado discussões a respeito da luta por direitos.

Entre luta por direitos, utopias radicais e utopias institucionais

Demandas sociais novas necessariamente ameaçam o status quo polÃÂtico e jurÃÂdico: isso é normal em uma democracia. Afinal, tais demandas tendem a exigir uma nova distribuição de recursos materiais e modificam as hierarquias de prestÃÂgio social (RODRIGUEZ, 2020). Por exemplo, demandas por direitos nascidas na comunidade LGBTI+ exigem não apenas novas interpretações das leis e a criação de novos direitos e polÃÂticas públicas (SILVA, 2021). Tais demandas também exigem que o Estado, o uso oficial do direito, reconheça que estas pessoas são titulares, por exemplo, da faculdade de se casarem, um reconhecimento que não é moralmente neutro. Explico.

O reconhecimento de uma demanda social pelo direito oficial confere a ela um status moralmente superior às demais, ao menos aos olhos de parte da sociedade. Por isso mesmo, podemos dizer que o direito possui uma "moralidade mÃÂnima temporária" que consiste no fato de que suas normas podem ser exigidas de qualquer pessoa, mesmo que ela não concorde com elas, mesmo contra a sua vontade. Nesse sentido, as normas jurÃÂdicas gozam de primazia sobre as demais normas que regulam a vida social.

Em razão da histórica centralização do poder de criar normas jurÃÂdicas e de perseguir sua efetivação nas mãos dos Estado nacionais, que se utilizam para este fim do sistema policial e do sistema de justiça, uma demanda reconhecida pelo uso oficial do direito torna-se, por assim dizer, universal. Ela deve ser respeitada por toda a sociedade, mesmo pelas pessoas e grupos que discordam dela.

Tal fato não impede que o debate público siga questionando a lei que reconheceu tal demanda, o que pode resultar em sua modificação pelo Parlamento. No entanto, ao menos enquanto tal lei existir, ela seguirá revestida da "moralidade mÃÂnima" do direito que consiste no fato de suas normas serem obrigatórias mesmo contra a vontade individual das pessoas, fato que permite que o aparelho estatal deixe de aplicar normas que uma série de grupos e indivÃÂduos consideram como morais e, mais do que isso, consideram que deveriam gozar do status jurÃÂdico.

Nesse sentido, cada norma jurÃÂdica marca a vitória jurÃÂdico-moral temporária de determinados grupos sobre outros. A criação de direitos é sempre jurispática (COVER, 1983). Por isso mesmo, parece razoável imaginar que o status especial que o...

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