Paraconjugalidade
Páginas | 57-84 |
6
PARACONJUGALIDADE
6.1 O FUTURO: PARACONJUGALIDADE – NOVO CONCEITO PARA
UMA NOVA CONJUGALIDADE
Para o Direito de Família a ausência de um pensamento estático e imutável
é condição sine qua non de sua aplicabilidade, já que a signicação lógica das leis
e sua virtude plasmadora das relações sociais pode ir, e geralmente vai, muito
além do que pensaram e previram os que formavam.1
Questionar verdades absolutas em termo de norma, princípio e funda-
mento é o que parece ser a verdadeira essência do direito das famílias. A própria
constituição de família e sua alteração ao longo das décadas tem sido verdadeira
desconstrução do que se conhecia como certezas e fundamentos básicos do tema.2
É, portanto, função do sistema legal/jurídico, partindo da evolução da so-
ciedade, organizar algo que de fato a represente, transformando o existente no
mundo do direito em algo que possa ser gozado pela sociedade até mesmo como
elemento organizador de sua estrutura:
Na evolução das sociedades, os estágios de desenvolvimento dependem dessa possibilidade
de normatização arbitrária – primeiramente, estão sempre ligadas a uma criação invisível ou
mesmo a uma deslegitimação da arbitrariedade no momento de xar a forma. E é precisamen-
te porque a forma mista normalidade/normatividade (que se distingue do desconhecido, do
inesperado, do surpreendente) é algo sempre precedente que o direito pode ler o passado
nesses estágios de evolução, como se o direito sempre tivesse existido. O direito jamais “se
inicia”. Ele pode sempre se enlaçar com tradições que vão sendo descobertas. Se a sociedade
possibilita sua diferenciação, o direito se fecha em um sistema autorreferencial e trabalha
com o material normativo que sempre esteve à sua disposição.3
1. KOHLER, Ueber die interpretation von Gesentzen, in Zeitschri f.d. Priv. und o. Recht d. Gegenwart,
Bd. XIII, Viena, 1885. In: DEL VECHIO, Giorgio. Princípios gerais do direito. Tradução de Fernando de
Bragança. Belo Horizonte: Leider, 2003 apud PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais
norteadores do direito de família. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 65.
2. LIMA, Juliana Maggi. Família homoafetiva na jurisprudência do STF e STJ. Indaiatuba: Foco, 2022. p.
9.
3. LUHMANN, Niklas. O direito das sociedades. Trad. Saulo Krieger; tradução das citações em latim
Alexandre Agnolon. São Paulo: Martins Fontes, 2016. ePUB.
CONTRATO PARACONJUGAL • Silvia Felipe Marzagão
58
De fato, a pura e simples celebração do casamento carrega em si uma série
de pressupostos, combinados (tácitos, muitas vezes), direitos e deveres. É que,
para a triangulação cônjuge um, cônjuge dois e a sociedade, as regras milenares
do casamento são, muitas vezes, sucientes. Oque socialmente se espera de duas
pessoas que se casam pode ser cumprido pela simples assunção da condição de
casados.
Ocorre que, ao longo dos séculos, o casamento sempre esteve diametralmen-
te ligado à ideia da religião e da submissão do homem a uma entidade superior,
um Deus todo poderoso e que tivesse ampla ingerência sobre cada passo e con-
sequência na vida humana. Considerando que a religião arma que nossas leis
não são resultado de capricho humano, e, sim determinadas por uma autoridade
suprema e absoluta,4 torna-se menos penoso compreendermos a razão pela qual
o ser humano, muitas vezes, deixou de questionar aquilo que jamais poderia ser
tomado como inquestionável.
E isso porque, a simples existência de uma pluralidade de pessoas, relações e
realidades já deveria servir como verdadeira base para que não se compreendesse
possível a unicação de comportamentos e expectativas que seriam imediata-
mente trazidas pura e simplesmente pela assunção da condição de casados.
Diante dessa circunstância, natural que se compreenda que há elementos
ligados à intimidade da vida do casal que podem não estar sucientemente abar-
cados pelas regras jurídicas e sociais advindas do casamento (negócio jurídico
este que, como visto, tem os mesmos requisitos e a mesma forma para todas as
pessoas que o desejem celebrar).
Decorre daí, assim, a paraconjugalidade. É ela composta por elementos
que, muito embora orbitem o negócio jurídico casamento, não são inerentes a
todos eles (e nem aplicável, no mesmo formato, a todos os casais). Os elementos
de paraconjugalidade representam a parcela autônoma e individual, talhada na
autonomia privada, que cada casal acrescerá à si, em verdadeira complementação
às regras genéricas e aplicáveis a todos os casamentos.
Pode-se, portanto, dizer que o conceito de paraconjugalidade trará uma
ligação imediata entre o afeto, os anseios dos consortes e o casamento propria-
mente dito. Será a possibilidade de cada um dos casais, por si só, reconhecerem
o que de fato formará a sua (e só a sua) comunhão plena de vidas.5
4. HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Trad. Janaína Marcoantonio.
50.ed. Porto Alegre: L&PM, 2020. p. 218.
5. “Com o casamento o sujeito deixa de ser uma individualidade e passa a ser uma sociedade. O casal
é um par de sócios. Na sociedade, as únicas coisas essencialmente importantes são os interesses e a
satisfação desses interesses. Se o interesse de duas pessoas é obter felicidade, o melhor será conduzir
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO