Parecer jurídico sobre 'análise do decreto 10.502/2020 e a política nacional de educação especial: avaliação sobre retrocessos no ordenamento jurídico'

AutorLaís de Figueirêdo Lopes e Stella Camlot Reicher
Ocupação do AutorDoutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direitos Humanos pela PUC/SP. Integra o Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Foi Conselheira do Conade - Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência representando o Conselho Federal da OAB, de 2006 a 2011, e Ex-...
Páginas331-396
PARECER JURÍDICO SOBRE “ANÁLISE DO
DECRETO 10.502/2020 E A POLÍTICA NACIONAL
DE EDUCAÇÃO ESPECIAL: AVALIAÇÃO SOBRE
RETROCESSOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO”1
Laís de Figueirêdo Lopes
Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direitos Hu-
manos pela PUC/SP. Integra o Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria
Pública do Estado de São Paulo. Foi Conselheira do Conade – Conselho Nacional dos
Direitos das Pessoas com Deciência representando o Conselho Federal da OAB, de
2006 a 2011, e Ex-Assessora Especial do Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da
República, de 2011 a 2016. Participou do comitê ad hoc de elaboração da Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deciência da ONU de 2005 a 2006, e do processo
de raticação no Brasil de 2007 a 2009. Advogada sócia de Szazi, Bechara, Storto,
Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados..
Stella Camlot Reicher
Mestre em Direitos Humanos pela USP. Integra a Rede Ibero-americana de Especialistas
sobre a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deciência.Cocoordenou os
trabalhos de elaboração do relatório da sociedade civil sobre a implementação da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deciência da ONU, representando
a sociedade civil na sessão do Comitê de Monitoramento da Convenção em 2015.
Advogada Consultora Jurídica do Instituto Jô Clemente e Sócia de Szazi, Bechara,
Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados..
Sumário : 1. A consulta – 2. Marco legal da educação inclusiva; 2.1 Legislação vigente sobre o direito
à educação inclusiva; 2.2 Monitoramento internacional do direito à educação inclusiva no Brasil;
2.2.1 1º relatório do estado brasileiro (27 de maio de 2012); 2.2.2 Lista de questões da sociedade
civil brasileira (16 de abril de 2015); 2.2.3 Lista de questões do comitê (24 de abril de 2015); 2.2.4
Resposta do Brasil à lista de questões do comitê (26 de junho de 2015); 2.2.5 Relatório da sociedade
civil brasileira (18 de agosto de 2015); 2.2.6 Relatório do comitê com observações conclusivas (04
de setembro de 2015); 2.2.7 Comentário geral 4 (25 de novembro de 2016) – 3. Análise do decreto
10.502, de 30 de Setembro de 2020; 3.1 Direito à educação inclusiva como direito público subjetivo;
3.2 Não discriminação: a cláusula de não-rejeição e as adaptações razoáveis; 3.3 O atendimento
educacional especializado – apoio de natureza pedagógica não substitutivo às classes comuns; 3.4
Direito à educação, escolha dos pais em relação às instituições de ensino; 3.5 A primazia da norma
mais favorável, a proibição de retrocesso e o princípio da proibição da proteção insuciente; 3.6
Ausência de consulta prévia; 3.7 O julgamento da ADI 5.357/DF; 3.8 ADPF 751/DF – 4. Conside-
rações nais; 4.1 Qual o sentido do direito à educação inclusiva contido na constituição federal
brasileira combinado com a convenção sobre os direitos das pessoas com deciência?; 4.2 O que é
o atendimento educacional especializado?; 4.3 Pode o atendimento educacional especializado ser
1. Este parecer jurídico foi elaborado por Laís de Figueirêdo Lopes e Stella Camlot Reicher, sócias de Szazi,
Bechara, Storto, Reicher e Figueiredo Lopes Advogados, a pedido do Instituto Alana, em outubro de 2020
quando da edição do Decreto Federal 10.502/2020, para avaliação dos retrocessos da educação inclusiva
no ordenamento jurídico. Contou com pesquisa e colaboração de Thais Tozzini Ribeiro e Cláudio Roberto
Barbosa Filho, advogados do mesmo escritório, e foi originalmente publicado em: https://alana.org.br/
wp-content/uploads/2020/10/ALANA_parecer_educacao_inclusiva-4.pdf. Acesso em: 13 jan. 2021.
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ofertado por organizações da sociedade civil?; 4.4 O AEE previsto pelo decreto 10.502/2020 está de
acordo com o conceito de atendimento educacional especializado previsto no ordenamento jurídico
vigente?; 4.5 É possível segregar a criança com deciência em “escolas especializadas” a partir do
seu tipo ou grau de deciência?; 4.6 É possível ter escolas bilíngues apenas para pessoas surdas, com
deciência auditiva ou surdocegos?; 4.7 É possível dizer que algumas crianças têm capacidade para
estar na escola e outras não?; 4.8. O decreto 10.502/2020 viola princípios e dispositivos constitucio-
nais?; 4.9. A família tem o direito de escolher em qual escola o seu lho ou sua lha deve estudar?;
4.10 Podem as organizações da sociedade civil pedir ingresso como como amicus curiae na ADPF
751 no STF que discute o decreto 10.502/2020? – Legislação de interesse – Leis – Decretos – Anexo I.
O texto do Decreto causou imensa preocupação entre organizações da sociedade
civil, especialistas em educação e os que lutam pelos direitos humanos das pessoas
com def‌iciência, pois, valendo-se de uma gramática de inclusão, o ato normativo
distorce o entendimento do que é o sistema educacional inclusivo e o atendimento
educacional especializado, com conceitos e modos de fazer a educação que contra-
riam os princípios da educação inclusiva.
Tanto é assim que a reação de diversos grupos foi imediata. No Congresso Na-
cional para sustar o ato normativo do Poder Executivo foram apresentados Projetos
de Decretos Legislativos (“PDL’s”) e no Supremo Tribunal Federal a Ação de Des-
cumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 751, submetida pelo Partido Rede
Sustentabilidade. Além disso, menos de 10 dias depois de publicado o Decreto, notas
técnicas e de repúdio de diversas organizações da sociedade civil foram divulgadas,
além de reportagens e entrevistas publicadas em jornais de grande circulação com a
opinião de especialistas e relatos de pessoas com def‌iciência favoráveis à educação
inclusiva. Pelo teor deste trabalho, nos ateremos aos argumentos jurídicos e não
analisaremos o debate político envolvido.
Resgatamos a legislação nacional e internacional, assim como o monitoramento
do direito à educação inclusiva no Brasil pela Organização das Nações Unidas (ONU)
para tratar do texto do Decreto e suas implicações jurídicas. Ao f‌inal desta análise,
concluímos que o Decreto Federal 10.502/2020 destoa da legislação construída nas
últimas décadas sobre educação inclusiva, tanto no plano nacional quanto interna-
cional, contrariando inclusive jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal,
sendo, portanto, inconstitucional. Conforme as considerações aqui trazidas, a educa-
ção inclusiva é um direito público subjetivo; o atendimento educacional especializado
não pode substituir o ensino regular; a liberdade de escolha das famílias e de atuação
das instituições de ensino encontra limitação no cumprimento da legislação vigente;
os princípios da primazia da norma mais favorável, da proibição de retrocesso em
direitos humanos e da proibição da proteção insuf‌iciente devem ser respeitados; e atos
normativos que versem sobre políticas públicas acerca das pessoas com def‌iciência
impõe a necessidade de sua consulta prévia.
O Decreto 10.502/2020 retrocede tanto do ponto de vista dos direitos quanto
da política pública educacional inclusiva que vinha sendo implementada no Brasil,
deturpando conceitos e abrindo espaço para mudança da lógica de f‌inanciamento e
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ANÁLISE DO DECRETO 10.502/2020 E A POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO ESPECIAL
funcionamento do sistema. É certo que ainda há necessidade de melhoria no sistema
educacional inclusivo, mas isso não acontecerá se os esforços forem vertidos para
retirar das escolas regulares a obrigação de inclusão, fortalecendo as escolas espe-
cializadas conforme o sistema anteriormente vigente.
Já avançamos, inclusive em termos de sociedade. Pesquisa do Instituto Alana2
realizada com o Datafolha em 2019 comprova que as percepções favoráveis à educação
inclusiva são predominantes na população brasileira adulta: quase 90% concordam
com a ideia de que as escolas se tornam melhores com a inclusão e quase 80% con-
cordam que as crianças com def‌iciência vão aprender mais na escola inclusiva. Nessa
linha, claro está o retrocesso, não apenas na legislação, mas nas práticas de gestão
do sistema educacional.
Não resta dúvida que toda a legislação nacional deve estar alinhada com a Con-
venção sobre os Direitos das Pessoas com Def‌iciência que possui status de norma
constitucional. Isso quer dizer que o direito à educação deve ser exercido de maneira
inclusiva, ou seja, em igualdade de oportunidades com as crianças sem def‌iciência.
Para tanto, o novo tratado de direitos humanos orientou especif‌icamente como o
direito à educação inclusiva deve ser concretizado, ou seja, com acessibilidade. Ele-
vou ao mais alto grau hierárquico de normas a premissa de que a escolarização seja
feita em ambiente escolar inclusivo, com os apoios necessários.
Além de inconstitucional, o Decreto 10.502/2020 pode causar um grande
retrocesso no avanço da implementação do direito à educação inclusiva no país se
não for rapidamente revertido, haja vista a iminência de matrículas para o ano letivo
de 2021. Já atingidas de forma brutal pela pandemia de coronavírus e impedidas de
exercerem o seu direito à educação inclusiva de forma plena em 2020, as educandas
e os educandos com def‌iciência poderão sofrer uma grave violação se não puderem
voltar à escola regular inclusiva ao “serem convidadas” a um “ambiente mais ade-
quado” para suas especif‌icidades. Acolher de forma seletiva e apartada, com base na
def‌iciência, é discriminatório, excludente e segregador. Escola inclusiva é a escola
que acolhe todos!
1. A CONSULTA
Consulta-nos o Instituto Alana sobre as implicações no ordenamento jurídico
do Decreto Federal 10.502/2020, publicado em 1º de outubro de 2020, que instituiu
a nova “Política Nacional de Educação Especial” .
Para esta análise, ao f‌inal, buscaremos responder as seguintes questões:
1. Qual o sentido do direito à educação inclusiva contido na Constituição Federal Brasileira
combinado com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deciência?
2. Disponível em: https://alana.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Pesquisa-Datafolha_o-que-a-populacao-
-brasileira-pensa-sobre-educacao-inclusiva.pdf. Acesso em: 10 out. 2020.
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