O sistema constitucional de direitos da pessoa com deficiência e a jurisprudência do supremo tribunal federal

AutorLuís Roberto Barroso e Carina Lellis
Ocupação do AutorLivre-Docente e Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Mestre pela Universidade de Yale. Visiting Scholar na Faculdade de Direito de Harvard e Senior Fellowna Harvard Kennedy School. Professor titular da UERJ. Ministro do Supremo Tribunal Federal. Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil. / Doutoranda e ...
Páginas269-292
O SISTEMA CONSTITUCIONAL DE DIREITOS DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA E A JURISPRUDÊNCIA
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Luís Roberto Barroso
Livre-Docente e Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre
pela Universidade de Yale. Visiting Scholar na Faculdade de Direito de Harvard e Senior
Fellowna Harvard Kennedy School. Professor titular da UERJ. Ministro do Supremo
Tribunal Federal. Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ – Brasil. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2430424576721113 ORCID: 0000-0003-3407-2304 E-mail:
gabmlrb@stf.jus.br
Carina Lellis
Doutoranda e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
UERJ. Assessora de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/6174580778049372 E-mail: carinalellis@gmail.com.
Sumário: 1. Introdução – 2. Breves notas a respeito da evolução do conceito de deciência – 3. A
sistemática constitucional de proteção à pessoa com deciência; 3.1 A Constituição de 1988; 3.2
Os tratados e convenções internacionais aprovados com status de emenda constitucional; 3.2.1 A
convenção sobre os direitos das pessoas com deciência – CDPD; 3.2.2 O Tratado de Marraqueche
– 4. A jurisprudência do STF sobre os direitos da pessoa com deciência; 4.1 Educação; 4.2 Traba-
lho; 4.3 Acessibilidade; 4.4 Assistência social e saúde; 4.5 Aposentadoria especial de servidores
públicos – 5. Conclusão – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
1. “Só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”, disse
José Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira1. O romance narra a história da cegueira
que se espalha incontrolavelmente sobre uma cidade. As pessoas se tornam cegas e
passam a ser isoladas em um manicômio, onde vivem em quarentena e experimen-
tam conf‌litos. A partir de um cenário de caos social, o autor elabora a trama sobre o
que as pessoas são capazes de fazer quando são tocadas pela cegueira. Sobre como
se adaptar a um mundo que não conseguem enxergar.
2. Já para Jorge Luís Borges, o renomado escritor argentino, a “cegueira não foi
uma miséria total para mim, não deve ser vista de uma forma patética. Deve ser vista
como um estilo de vida: é um dos estilos de vida dos homens”2. A cegueira entrou
progressivamente na sua vida, até que aos 55 anos se tornou cego. Para ele, tudo o
1. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 128.
2. BORGES, Jorge Luís. La Ceguera. Siete Noches. Disponível em: http://biblio3.url.edu.gt/Libros/borges/
Siete_noches.pdf , acesso em: 10 out. 2020.
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LUÍS ROBERTO BARROSO E CARINA LELLIS
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que acontece com um escritor deve servir de instrumento. A poesia, por vezes muito
visual, tem a oportunidade de transformar-se, também, em poesia auditiva e musi-
cal. Ele, cego, foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional argentina. Para ele, não
enxergar era apenas a forma como viveu boa parte de sua vida. Ele herdou a cegueira
de sua família, e disse que quando o f‌im da sua vida chegasse, gostaria de terminar
da mesma forma como seu pai e sua avó: cego, sorridente e corajoso.
3. Longe da distopia do Ensaio de Saramago, para Borges, ser cego não era uma
fonte de desespero e conf‌lito. A cegueira é apenas uma condição, que, em si, não
importa em valor ou desvalor. A pessoa não se torna necessariamente melhor nem
pior. As pessoas com def‌iciência não precisam ser exemplos de superação. Também
não devem ser vistas como inferiores.
4. Borges viveu da mesma maneira como vivem, atualmente, mais de um milhão
e quinhentos mil brasileiros, ou 0,75% da população, segundo dados do Conselho
Brasileiro de Oftalmologia3. Hoje vive no Brasil uma quantidade de pessoas com de-
f‌iciência visual suf‌iciente para povoar uma cidade como a do romance de Saramago.
Para essas pessoas, ser cego é normal. De acordo com Débora Diniz, “a def‌iciência
visual não signif‌ica isolamento ou sofrimento, pois não há sentença biológica de fra-
casso por alguém não enxergar. O que existem são contextos sociais pouco sensíveis
à compreensão da diversidade corporal como diferentes estilos de vida”4.
5. Entender que o corpo de uma pessoa com def‌iciência é normal ainda soa uma
ideia desaf‌iadora para boa parte da sociedade. Iniciamos com o exemplo da def‌iciência
visual, mas o mesmo raciocínio se estende para a auditiva, física, mental e intelectual.
É preciso exercitar a empatia e procurar enxergar o mundo pela perspectiva delas. De
fato, a def‌iciência não precisa ser signif‌icado de isolamento ou sofrimento, mas, para
que essas pessoas tenham a oportunidade de experimentar uma cidadania plena, é
preciso adaptar o meio social.
6. Esse é o principal desaf‌io dos constitucionalistas nessa matéria. Utilizar
instrumentos jurídicos para transformar o meio social e torná-lo mais inclusivo.
Construir a sociedade livre, justa e solidária que preconiza o art. 3º da Constituição,
de forma a permitir o exercício dos direitos fundamentais sem embaraços. A tarefa
se espraia por diversas áreas da experiência social, como educação, trabalho, saúde
e assistência social.
7. O objetivo deste artigo é oferecer um breve panorama dos direitos das pes-
soas com def‌iciência sob a perspectiva constitucional, apresentando precedentes do
Supremo Tribunal Federal a respeito do tema. O trabalho é dividido em três partes.
A primeira trata da evolução do conceito de def‌iciência. A segunda parte se volta à
análise do sistema constitucional de proteção à pessoa com def‌iciência. A terceira
3. Conselho Brasileiro de Oftalmologia. As Condições de Saúde Ocular no Brasil – 2019. p. 44. Disponível
em: https://cbo.com.br/novo/publicacoes/condicoes_saude_ocular_brasil_2019_atualizacao_2020_bq.pdf,
último acesso em: 10 out. 2020.
4. Débora Diniz. O que é def‌iciência. São Paulo: Brasiliense. 2007. p. 8.
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