Pelo fim da barbárie, um passo: justiça restaurativa e a superação da (ir)racionalidade punitiva/For the end of barbarism, a step: restorative justice and overcoming the punitive (ir)rationality.

AutorWermuth, Maiquel Ângelo Dezordi

Considerações iniciais

Juan Manuel Otero (2007, p. 49) escreve que o sistema de sanções--e aqui, acrescentase: especialmente a pena privativa de liberdade--encontra-se "justificado por um discurso jurÃÂdico que nos é demasiado familiar", o qual possui o êxito de "fazer com que não tenhamos de recordar a perturbadora ideia de que ferimos sem finalidade comprovada uns poucos indivÃÂduos, causando-lhes dor de forma programada e inteiramente conscientes disso". De fato, após as tentativas fracassadas de justificar a pena no Estado moderno (1), parece ser necessário perquirir sobre suas "funções reais", e, com isso, problematizar a racionalidade mesma que preside o sistema penal--analisada, aqui, com base na definição de Álvaro Pires (2004)--, sob pena de se falar em mero sofrimento estéril, o que remete à"era dos suplÃÂcios", como muito bem observado por Michel Foucault (1987).

Tendo em vista os inúmeros estudos que já "desmascararam" as funções declaradas da pena privativa de liberdade e do próprio Direito Penal (2), este breve estudo parte das reflexões sobre essa "justificação impossÃÂvel" (BELOFF, 1993) para lançar um olhar àrealidade prática da pena privativa de liberdade do Brasil. Com isso, procura-se contestar a racionalidade punitiva vigente e perquirir acerca de uma outra forma de tratar das "situações problemáticas" (3)--ou seja, como salienta Salo de Carvalho (2007, p. 83), dar um passo atrás e indagar, antes de "por que punir?", se é necessário punir.

Assim, por meio do estudo da justiça restaurativa, a questão que orienta esta investigação é a seguinte: em que medida a justiça restaurativa pode ser considerada uma forma alternativa de solução de conflitos alicerçada em uma racionalidade outra, que se afigura como condição de possibilidade para a superação da (ir)racionalidade punitiva? Em outras palavras: é a justiça restaurativa potencialmente um caminho adequado para que se atinjam modos de solução de conflitos mais humanos e comprometidos com os direitos e dignidade humana e, a longo prazo, um passo para a superação do modelo punitivo vigente? A hipótese deste estudo é que a justiça restaurativa, com seus princÃÂpios e valores afastados daqueles vigentes na justiça retributiva, constitui um horizonte promissor e, inclusive, importante, se e na medida em que resulta em um "cÃÂrculo virtuoso", em detrimento da lógica violenta operante atualmente no âmbito da resolução dos conflitos que a esfera penal chamou a si.

Para percorrer este percurso, realiza-se, primeiramente, um diagnóstico das penas no Brasil, partindo das considerações teóricas acerca da justificação da pena e avançando para uma análise que considere a realidade brasileira e suas peculiaridades, notadamente a permanência das relações desiguais baseadas em raça e classe social, que se refletem na seletividade da atuação do sistema penal, explicitando caracterÃÂsticas da (ir)racionalidade penal vigente. No segundo momento, objetiva-se analisar algumas propostas e potencialidades da justiça restaurativa, a fim de verificar se, e a partir de que pressupostos, ela se insere em um contexto de busca por uma racionalidade diversa para a resolução dos conflitos sociais que são, no presente, subtraÃÂdos pelo sistema penal.

Utiliza-se do método de abordagem hipotético-dedutivo, em uma pesquisa do tipo exploratória. Os procedimentos adotados envolvem a seleção da bibliografia que forma o referente teórico deste estudo, sua identificação como produção cientÃÂfica relevante, leitura e reflexão, que, coadunadas com os estudos acerca da realidade prisional e penal brasileira, proporcionam as possÃÂveis respostas ao problema aqui proposto.

1 Entre a justificação impossÃÂvel e a realidade inimaginável: a pena privativa de liberdade no Brasil e os reflexos da (ir)racionalidade punitiva

Georg Rusche e Otto Kirchheimer (2004, p. 19), em sua obra "Punição e estrutura social", explicam que, para uma abordagem profÃÂcua dos sistemas penais, "é necessário despir a instituição social da pena de seu viés ideológico e de seu escopo jurÃÂdico e, por fim, trabalhá-la a partir de suas verdadeiras relações". Na ótica dos autores, pois, essas "verdadeiras relações" dizem respeito àanálise das formas punitivas adotadas em função de um sistema de produção, ou seja, as relações de produção de um dado momento histórico como determinantes da adoção de práticas penais especÃÂficas. Evidencia-se, nesse sentido, uma das principais contribuições da obra em questão para o pensamento criminológico, muito bem apreendida por Foucault (1987, p. 27): Rusche e Kirchheimer auxiliam na compreensão de que "as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos 'negativos' que permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir"; pelo contrário, essas medidas "estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm por encargo sustentar", de modo que, "se os castigos legais são feitos para sancionar as infrações, pode-se dizer que a definição das infrações e sua repressão são feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos e suas funções."

Conforme Alessandro Baratta (2016, p. 191), a obra de Rusche e Kichheimer (juntamente com Vigiar e Punir, de Michel Foucault), produziu, no plano epistemológico, resultados irreversÃÂveis, formando o que o autor denomina "enfoque materialista ou polÃÂtico-econômico", contrapondo-se ao "enfoque idealista", cujo "núcleo central é representado pelas teorias dos fins da pena". É interessante pensar, a partir desse viés, nos efeitos desse enfoque "idealista" que, não obstante já desnudado em sua incapacidade em corresponder àrealidade, segue norteando as práticas penais no Brasil e em outros paÃÂses. De acordo com Massimo Pavarini (1993, p. 31), a justificação, para a teoria da pena, torna-se cada vez mais difÃÂcil, seja enquanto "justiça", seja enquanto "utilidade": "Desde el momento que la pena se ha venido que 'emancipar' del 'castigo divino', ha estado amenazada permanentemente por el riesgo de ser descubierta por lo que, contingentemente, está de trás de la ficción de lo que quiere hacer creer que es".

Essa dificuldade em justificar a pena, tanto em concreto quanto em abstrato (4) não significou, no entanto, o abandono da concepção idealista em prol da admissão da pena--principalmente da pena de prisão--em sua função real, de sorte que o "duvidoso êxito" dos debates que há dois séculos se dividem entre os que entendem que a função da pena deveria ser retributiva, os que pensam que deveria ser intimidativa e aqueles que defendem a função reeducativa, tem sido "uma teoria 'polifuncional' da pena, que, atualmente, na maioria dos casos, põe o acento, particularmente, na reeducação" (BARATTA, 2016, p. 191).

Apesar do insucesso na justificação e também da sua legitimação na prática, a pena--embora seja um produto especÃÂfico da modernidade, que ofereceu ao "Estado moderno um mecanismo de controle supostamente igualitário e afastado de privilégios estipulados antes do aparecimento dos Estados nacionais" (OTERO, 2007, p. 47)--encontra-se de tal forma naturalizada, que pensar em soluções diversas para as situações que hoje chamamos de "criminosas" é um ato quase que subversivo. Conforme entende Álvaro Pires (2004, p. 40-41, grifo do autor), "é quando tentamos pensar de outra forma que tomamos consciência da colonização que ele [o sistema penal] exerce sobre a nossa maneira de ver as coisas".

Pires (2004, p. 41) argumenta que a racionalidade penal moderna--produzida no Ocidente a partir da segunda metade do século XVIII--cria um "ponto de vista" que naturaliza a estrutura normativa eleita inicialmente pelo sistema penal e, com isso, constitui um obstáculo epistemológico tanto ao conhecimento da questão penal quanto àcriação de uma outra racionalidade. Trata-se de uma estrutura normativa telescópica e que valoriza a pena aflitiva. Telescópica pois conecta, na norma de comportamento, dois nÃÂveis distintos de normas: as de primeiro grau (comportamento) e as de segundo grau (sanção), de modo que a formulação normativa irá sempre implicar uma sanção a uma norma de comportamento--"aquele que faz x pode ou deve ser punido com y". Segundo o referido autor (PIRES, 2004, p. 41), três tipos de sanção são viáveis nessa estrutura telescópica: a pena de morte ou de algum castigo corporal, a prisão e a multa, sendo que a pena aflitiva, especialmente a prisão, é que adquire relevo "no auto-retrato [sic] identitário do sistema penal". Além disso, outra caracterÃÂstica desse "ponto de vista" é que é a pena aflitiva que "comunica o valor da norma de comportamento e o grau de reprovação em caso de desrespeito" (PIRES, 2004, p. 41). Desse modo, configura-se um sistema penal cujo autorretrato é punitivo--o procedimento deve ser hostil e as sanções devem ser aflitivas--, e a punição, que não deve preocupar-se com os laços sociais concretos, constitui-se uma obrigação ou necessidade (PIRES, 2004).

Assim, pode-se compreender o porquê de uma das indagações mais importantes do direito penal e da teoria polÃÂtica: "por que punir?". Essa indagação acaba por esconder uma consideração anterior, consubstanciada na pergunta: é necessário ou não punir? (CARVALHO, 2007, p. 83). Essa "ocultação" se deve, justamente, a essa...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT